Diário de bordo: “São muitas vidas que podemos impactar, juntos.”

No marco do Dia Mundial do Refugiado, leia o relato de Leticia Spiller sobre sua missão com o ACNUR para conhecer a resposta humanitária no norte do país

Letícia Spiller nos armazéns de suprimentos humanitários do ACNUR em Boa Vista, Roraima. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Letícia Spiller nos armazéns de suprimentos humanitários do ACNUR em Boa Vista, Roraima. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

“Minha missão começou em Boa Vista, capital de Roraima, bem no norte do país. É uma cidade linda, e que se viu de repente diante do desafio de receber um grande fluxo de pessoas a partir de 2017. De uma hora para outra, uma necessidade se fez presente ali: acolher refugiados e migrantes da Venezuela. Foi quando o trabalho do ACNUR começou nessa emergência.

De lá para cá, muita coisa mudou. Não só em Roraima, como no mundo inteiro: Em 2017, o número de pessoas forçadas a se deslocar era de cerca de 70 milhões. Atualmente, são mais de 120 milhões de pessoas que precisam de proteção internacional. São cada vez mais emergências como essa acontecendo em todos os continentes, com um impacto humano imensurável, e recursos mais escassos.

Faça hoje mesmo uma doação para o ACNUR e ajude operações humanitárias que salvam vidas.

Antes de conhecer a Operação Acolhida, que é a resposta do governo deferal ao fluxo de refugiados venezuelanos, e que conta com o apoio do ACNUR, eu sabia que uma parte das pessoas que chegavam eram abrigadas, e que outras eram realocadas para outras cidades. Mas não tinha ideia da magnitude, da seriedade e da complexidade de se manter uma operação gigantesca de ajuda humanitária . Até hoje, centenas de pessoas  cruzam a fronteira todos os dias buscando recomeçar suas vidas no Brasil. Para vocês terem uma ideia, compartilho alguns números:

– 7.062 pessoas estão atualmente abrigadas em espaços de acolhida emergencial em Boa Vista e Pacaraima.

Elas recebem alimentação três vezes por dia, acompanhamento de proteção, kits de higiene e limpeza, e quando estão prontas para saírem dos abrigos, o ACNUR também oferece auxílio financeiro para os primeiros meses de aluguel, remédios, ou quaisquer necessidades que essas pessoas tenham. É uma forma de garantir a autonomia e incentivar a economia local.

– 627.465 pessoas venezuelanas já vieram para o Brasil, praticamente todas passaram pela Operação Acolhida.

Pude acompanhar o passo a passo da recepção quando chegam em Pacaraima, na fronteira. Elas são encaminhadas para verificação de documentação, imunizadas com todas as vacinas do programa nacional, decidem se querem recomeçar em outras partes do Brasil ou permanecer no estado. De toda forma, todos são encaminhadas para os serviços básicos conforme precisam de acesso a saúde, educação e outros.

Esse é só um resumo da estrutura, que na verdade é gigantesca e atende cada tipo de pessoa e perfil de vulnerabilidade que se possam se encontrar. Tem atendimento especializado para crianças, mães solteiras, famílias com alguma necessidade de saúde urgente, idosos. Ali, eu vi o cuidado do ACNUR em atender e encaminhar cada pessoa, cada família. E nesse processo fomos conhecendo tantas histórias que me marcaram… Queria compartilhar algumas com vocês:

Keith

“Ele sonha em voltar a estudar”, afirma o pai adotivo de Keith. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Conheci o Keith, de 9 anos, no abrigo Pricumã, em Boa Vista. Sua mãe, que era sua única família, faleceu quando ainda estavam na Venezuela. Órfão ainda muito cedo, foi adotado pelo Hil, com quem vive no abrigo hoje. Um dos motivos de terem vindo para o Brasil é o de poder dar continuidade aos cuidados de saúde do pequeno, que nasceu com paralisia cerebral.

Histórias como essa me fazem pensar que seu destino poderia ter sido absolutamente trágico, mas uma união de esforços garantiu que tivessem a oportunidade de viver em segurança. O mais bonito foi saber que eles têm muitos sonhos e motivos para continuar sorrindo: seu pai adotivo, Hil, quer ser roteirista, e o pequeno quer estudar.

Mujeres Fuertes

Leticia com o grupo de mulheres que se formou na última edição do projeto Mujeres Fuertes, que capacita mulheres no empreendedorismo gastronômico em Roraima e Amazonas. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Esse projeto me encantou pela união que eu vi entre essas mulheres de diversas nacionalidades que receberam capacitação de empreendedorismo culinário. Elas aprenderam desde técnicas gastronômicas até como montar e divulgar seu negócio.

Mas o grupo é mais do que uma rede de apoio e aprendizado: elas são comprometidas com o sucesso e bem-estar uma das outras. Elas se ajudam não só compartilhando clientes, mas também nos cuidados com os filhos e o que mais precisarem. Elas se divertem juntas e se apoiam em todos os sentidos.

Durante nosso encontro, experimentei tequeños, um salgadinho tradicional venezuelano de queijo, que não pode faltar em nenhuma festa de aniversário! E descobri que agora, em Boa Vista, o quitute já virou um item indispensável nas festinhas infantis. Com elas, vi como é possível compartilharmos cuidado e desfrutarmos do melhor que cada um tem a oferecer.

Artesãs Warao

Mulheres Warao receberam a letícia com cantos tradicionais e apresentaram a mitologia do buriti, a árvore da vida Warao. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Letícia aprende a fazer pulseira com a palha de buriti no espaço do projeto "Warao", no abrigo Tuaranoko em Boa Vista. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Conhecer as mulheres Warao foi algo que me tocou profundamente, porque carregam uma força e sabedoria ancestral belíssima. Logo quando chegamos no abrigo Tuaranoko fomos recebidas com muita alegria, dança, canto e comida. Me senti muito acolhida por elas, mesmo que não falássemos o mesmo

Depois fomos conhecer de perto o projeto de produção de artesanatos tradicionais, que é a forma como hoje elas se sustentam.

É um trabalho lindo, feito com a palha do Buriti, que para os Warao é a árvore da vida. Não sei se a pulseirinha que eu fiz ficou tão bonita quanto a delas, mas foi uma experiência que eu nunca mais vou esquecer.

Letícia posa com crianças no abrigo Pricumã, em Boa Vista. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Projeto de pintura no abrigo Pricumã leva arte e beleza para jovens deslocados. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

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Leticia com a jovem venezuelana que ajudou a construir o protótipo de abrigo de barro, solução adaptada ao clima local desenvolvida no Centro de Sustentabilidade do ACNUR em Boa Vista. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Jovens abrigadas após aula de danças tradicionais venezuelanas. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Leticia Spiller e o representante do ACNUR, Davide Torzilli, em briefing da Operação Acolhida em Boa Vista. ©ACNUR/Shanti Sai Moreno Brooks

Ao longo dos três dias de missão vi muito mais coisas que me emocionaram, encantaram. Pessoas muito fortes que estão buscando um novo caminho sem se desconectarem de suas raízes, aprendendo um novo idioma e uma nova forma de viver. Para todas as dificuldades que vi pessoas enfrentando, vi também muitas pessoas trabalhando para apoiá-las.

Uma resposta emergencial é sobre isso: como cada órgão, cada parte da sociedade cumpre com seu papel humanitário – no sentido de humanidade mesmo – de ajudar o próximo a partir de suas necessidades. Por um acaso essas pessoas são venezuelanas, mas elas poderiam ser de qualquer nacionalidade, não é esse o ponto. O ponto é que são pessoas. E todas as pessoas têm direito à vida, segurança, dignidade.

Quando você pensa em ‘refugiado’, normalmente associamos às guerras que a gente vê nas notícias, mas não paramos para pensar no que realmente significa ter que deixar tudo para trás. Quando seus direitos são tirados de você, o que fazer? Para onde ir? A quem recorrer?

Foi aí que realmente entendi o significado de proteção internacional. Na prática, é quando alguém faz uma intervenção para salvar sua vida. Para garantir que você – e todas as pessoas, sem distinção – vão acessar seus direitos. De ter onde dormir, o que comer, água potável… De que você vai sim poder acessar educação, ter uma profissão. De que você vai ter condições de existir.

É por isso que eu apoio o ACNUR e esse trabalho tão grandioso. Só de imaginar que são mais de 120 milhões de pessoas forçadas a sair de suas casas em todo o mundo… São muitas vidas que podemos impactas, juntos.

Torne-se um doador mensal do ACNUR e apoie pessoas que precisam de ajuda humanitária vital