Campanha de registro tira indígenas do Congo das sombras

Uma campanha da República do Congo e do ACNUR fornece certidões de nascimento a milhares de congoleses em risco de apatridia, incluindo indígenas

Damas Ngueste e sua esposa, Marie - ambos de camisa branca - são fotografados com seus filhos na frente de sua casa em Vono, na República do Congo. © ACNUR / Hélène Caux

Marie não sabe sua idade, mas parece estar perto dos trinta. Ela nunca teve certidão de nascimento nem qualquer outro documento de identidade. Ela também nunca foi à escola. Ela vive na miséria com seus seis filhos e seu marido, Damas, em Vono, um pequeno vilarejo na região dos planaltos da República do Congo, a 40 quilômetros de Djambala, a principal cidade.


“Adoraria procurar trabalho em Djambala, como empregada doméstica por exemplo, e poder sustentar a minha família. Mas você precisa de documentos para ser contratado”, diz ela com um tom triste na voz. Como Marie, a maioria dos indígenas caçadores-coletores da aldeia não tem certidão de nascimento – a primeira prova legal de existência.

Para Marie, todo dia é uma questão de sobrevivência. Ela e Damas caminham quilômetros em busca de folhas de mandioca na floresta, bem como aspargos, cogumelos e cana-de-açúcar. Com o pouco que conseguem vender, às vezes compram um pouco de carne, azeite e sal para as crianças. Mas outras vezes, a família passa fome.

“Estamos em uma situação muito, muito vulnerável. Estou lutando todos os dias para conseguir comida para a família. Todo dia. Mas meus filhos me dão energia para lutar por eles”, diz ela com a voz trêmula. Marie não conseguiu matricular seus filhos na escola porque eles não tinham as certidões de nascimento exigidas no Congo e em muitos outros países africanos para a matrícula. Em vez disso, eles caminham na floresta com ela em busca de comida e lenha.

“Estamos em uma situação muito, muito vulnerável. Estou lutando todos os dias para conseguir comida para a família”

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Mawaki Ngandibi, 24, sentado com seu filho Doudé, de 18 meses, em frente à sua casa em Ngoulayo, na República do Congo © ACNUR / Hélène Caux

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Damas Ngueste (centro) ajuda o morador Clave (à esquerda) a amarrar feixes de folhas coletadas na floresta enquanto sua filha mais velha, Bibila, (à direita) segura o fruto do tondolo que coletou © ACNUR / Hélène Caux

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Marie Ngokoli volta da floresta para casa depois de colher aspargos e folhas usados para embrulhar tubérculos de mandioca para vender no mercado © ACNUR / Hélène Caux

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Damas Ngueste ouve rádio enquanto sua esposa Marie corta lenha para fazer fogo para cozinhar © ACNUR / Hélène Caux

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Justin Assomoyi, diretor de promoção dos direitos dos povos indígenas no Ministério da Justiça, entrega uma certidão de nascimento tardia a um jovem menino indígena em Ngoulayo, em 13 de setembro de 2021 © ACNUR / Hélène Caux

“Para alguns Bantu no Congo – o principal grupo étnico – os povos indígenas foram e ainda são considerados menos que humanos. Eles foram usados ​​como servos e colocados para trabalhar no campo, entre outras tarefas”, afirma Cyr Maixent Tiba, Bantu e Assessor de Direitos Humanos e Promoção dos Povos Indígenas do Ministério da Justiça de Brazzaville. Ele também é o ponto focal do Ministério sobre apatridia. “Estar constantemente marginalizado desencadeou um complexo de inferioridade entre os povos indígenas no Congo e um distanciamento entre os povos.”

A marginalização, combinada com o afastamento de suas comunidades, que estão longe de instituições e serviços governamentais, torna mais difícil para eles registrar seus filhos ao nascer e se envolver no demorado processo de obtenção de carteiras de identidade.

Além disso, algumas mulheres indígenas afirmam ter sido solicitadas a pagar taxas nas maternidades para registrar seus bebês recém-nascidos, serviço que, por lei, é gratuito. Alguns chefes de aldeia também pedem dinheiro para adicionar nomes de povos indígenas à lista de pessoas com direito a solicitar certidões de nascimento. Sem recursos para pagar, muitos desistem sem registrar os filhos.

As comunidades indígenas do Congo não estão sozinhas em sua situação. Em todo o mundo, milhões de pessoas não conseguem provar sua cidadania e se encontram excluídas da educação, dos serviços médicos e de empregos formais, e não podem se mover livremente. Por meio de sua campanha #IBelong para Acabar com a Apatridia, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), quer garantir que todas as pessoas tenham documentação até 2024.

No Congo, um censo do estado civil há três anos levou à identificação de cerca de 199.400 pessoas – incluindo pelo menos 25.000 indígenas – sem certidão de nascimento, em uma população total de quase 5,8 milhões. Com base nesses dados, o governo lançou uma ampla operação nacional em 2020, com o apoio do ACNUR, para a emissão de certidões de nascimento.

“O objetivo é fazer com que todo congolês tenha uma certidão de nascimento. E os indígenas são congoleses”

Atendimentos foram realizados para cadastrar pessoas e entregar os documentos. Em setembro de 2021, 30.000 certidões de nascimento foram emitidas, incluindo 5.000 para indígenas. “O objetivo é fazer com que todo congolês tenha uma certidão de nascimento. E os indígenas são congoleses”, destaca Justin Assomoyi, Diretor de Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas do Ministério da Justiça.

Para os indígenas, receber certidões de nascimento e documentos de identidade é um passaporte para uma nova vida. “É necessário ter documentação de identidade para escapar da apatridia, que hoje é considerada uma grave violação dos direitos humanos”, disse Geodefroid Quentin Banga, especialista em apatridia do ACNUR em Brazzaville. “Mas além da documentação, o aspecto socioeconômico também deve ser levado em consideração”.

Mawaki Ngandibi, de 24 anos, não poderia estar mais feliz depois que sua família se beneficiou da iniciativa. Em setembro, ele e sua esposa Nadine receberam a certidão de nascimento de seu filho Doudé, de 18 meses, em uma cerimônia oficial em Djambala. “Fico feliz com a certidão de nascimento do meu filho porque, quando ele crescer, vou mandá-lo para a escola”, diz.

Marie e Damas registraram-se há algum tempo em busca de documentos. Eles esperam que sua família obtenha suas identidades em breve, para que eles também possam superar uma vida de exclusão e proporcionar um futuro para seus filhos.

“Minha vida está quebrada, perdida”, diz Damas. “Gostaria de conseguir as certidões de nascimento dos meus filhos para que sejam admitidos na escola. Todas as minhas esperanças estão em meus filhos”.