Conheça Kykeo: O ‘Karate Kid’ que é 'mais argentino que doce de leite'
Conheça Kykeo: O ‘Karate Kid’ que é 'mais argentino que doce de leite'
Agora em seus quarenta anos de idade, os amigos de infância se reuniram de toda a Argentina para recriar a foto tirada em 1983, quando eles eram meninos de 4 a 10 anos de idade.
Ninguém se lembrava do dia em que a foto foi tirada, mas todos eles se encaixaram perfeitamente em seus papéis. O irmão mais velho de Kykeo, Dang, e dois amigos assumiram suas posições na frente do hotel em Buenos Aires que todos chamaram de lar após suas famílias serem reassentadas do Laos para a Argentina no final dos anos 70. Enquanto isso, em primeiro plano, Kykeo habilmente reproduz um golpe de karatê, com seu sorriso brilhante e impetuoso inalterado pelas décadas que se seguiram.
“Eu não sabia o que estava fazendo", disse Kykeo, 43 anos, que agora, como o destino quis, é um instrutor profissional de karatê. "Gostamos de brincar de briga, mas não tínhamos ideia de que era um movimento de karatê. Achei tão engraçado quando vi [a foto]".
“Não tínhamos ideia de que era um movimento de karatê."
Enquanto o karatê parece ter vindo naturalmente para Kykeo, desde menino ele construiu esta habilidade com aulas a partir de seus nove anos de idade. No início da adolescência, ele havia obtido sua faixa preta, e seus técnicos o enxergavam como um forte candidato para a seleção nacional da Argentina.
Mas os sonhos olímpicos de Kykeo foram frustrados quando o jovem atleta soube que, como refugiado, ele era inelegível para representar a Argentina. Na verdade, levariam vários anos até ele iniciar o processo de naturalização no país que foi seu lar desde a infância.
Kykeo tinha apenas nove meses de idade quando ele e sua família foram transportados por via aérea de um campo de refugiados na Tailândia que abrigava laocianos. O ano era 1979, em meio às agitações que levariam mais de 3 milhões de pessoas a fugir dos países que constituíam a antiga colônia francesa da Indochina: Camboja, Laos e Vietnã.
Enquanto a maioria dos que fugiram foram para os Estados Unidos, França e Canadá, a família Kabsuvan estava entre as 293 famílias laocianas a serem reassentadas na Argentina, segundo o Prof. Chia Youyee Vang, acadêmico da Universidade de Wisconsin-Milwaukee.
"Eles não tinham ideia de como seria a Argentina... Eles não tinham ideia de para onde estavam indo, mas confiavam que 'aqui é um país que está oferecendo refúgio para mim e minha família, então eu irei'. Mas eles não tinham nenhuma referência para o que estaria reservado" para eles na Argentina, disse Chia, que conduziu uma extensa pesquisa sobre a diáspora laociana e desempenhou um papel importante na identificação de Kykeo e dos outros na foto.
Fotografada por Alejandro Cherep, um fotojornalista argentino que trabalha para o ACNUR, a Agência das Nações Unidas para Refugiados, a imagem em preto-e-branco foi selecionada do extenso arquivo de fotos da agência para ser colorida como parte de um projeto em andamento chamado "A Cor da Fuga". O ACNUR trouxe Kykeo, seu irmão e seus amigos para Buenos Aires em novembro de 2021 para recriar a foto.
Após um tempo no Hotel Estrella, onde a foto foi tirada, muitas das famílias laocianas reassentadas se mudaram para Rosário, a terceira cidade mais populosa da Argentina, algumas horas a noroesta da capital. Ainda hoje, a comunidade laociana em Rosário permanece forte.
Os pais de Kykeo, entretanto, seguiram seu próprio caminho, eventualmente comprando uma casa de San Nicolás de los Arroyos, uma pequena cidade provincial onde a família Kabsuvan estavam entre os únicos residentes de ascendência asiática. Quando criança, se parecer diferente dos seus colegas era um fator relevante para Kykeo.
"Eram desconfortáveis... As piadas sobre comer arroz todos os dias", disse ele, acrescentando: "Sempre nos sentíamos diferentes da maioria do povo argentino".
As coisas ficaram mais difíceis para Kykeo e Dang depois que seus pais se separaram e seu pai sofreu um derrame quando ainda estava com 30 anos de idade. Com seu pai parcialmente paralisado e sua mãe trabalhando longas horas vendendo roupas de porta em porta, os meninos foram enviados para viver em uma casa de grupo com missionários cristãos por um tempo.
Somente após sua mãe voltar a viver com os filhos, os meninos começaram aulas de karatê. Os professores de karatê acabaram assumindo um papel quase paternal para Kykeo, cujo próprio pai nunca se recuperou do derrame e necessitou de cuidados extensivos até sua morte há dois anos.
"Eu não podia pedir conselhos ao meu pai, então sempre que eu tinha algo que eu queria saber, eu pedia ao meu treinador", disse Kykeo, acrescentando que além dos desafios físicos do karatê, ele sempre apreciou o rigor moral do esporte. "Eu gostava das lições e dos valores que o karatê lhe dá como pessoa."
Ainda adolescente, Kykeo recebeu a notícia de sua inelegibilidade para competir por uma vaga na seleção argentina de karatê. A Argentina foi, afinal, o único país que ele realmente conheceu. Kykeo sempre abraçou com entusiasmo todas as coisas argentinas – do futebol ao mate, o chá de ervas amargas que ele e muitos de seus compatriotas argentinos consomem diariamente.
"Eu posso ter características asiáticas", disse Kykeo, com seu sorriso aberto. "Mas eu sou mais argentino que doce de leite", disse ele referindo-se ao doce de caramelo que é a obsessão nacional argentina.
Impossibilitado de participar dos torneios nacionais mais importantes, o jovem Kykeo se afastou do karatê, e acabou abandonando o Ensino Médio para aceitar um emprego em uma fábrica de roupas em Buenos Aires. Ele teve três filhas antes de se separar da mãe das meninas e voltar para San Nicolás alguns anos atrás.
Kykeo deu voltas em sua vida. Ele e sua nova parceira, Giovana Monzón, voltaram para a casa da família Kabsuvan com Brisa e Elías, os dois filhos de sua parceira de um casamento anterior. A dupla está esperando um filho, e Kykeo sonha em transformar o que antes era a garagem da casa em uma pequena academia.
Gustavo Torres, que está entre os alunos de karatê mais assíduos de Kykeo, diz que admira a devoção de seu amigo e professor ao esporte.
"A dedicação e paixão que ele sente por ensinar realmente se manifestam", disse Gustavo, cuja amizade com Kykeo iniciou há décadas atrás, quando ambos estavam apenas iniciando as aulas de karatê. "Ele é a pessoa certa para o trabalho."
Na academia que ele espera abrir, Kykeo planeja oferecer CrossFit e outras aulas de ginástica. Além, é claro, de karatê - o esporte que ele afirma ter o dado um compasso moral inabalável que lhe permitiu lidar com os altos e baixos de uma vida marcada por mudanças e perdas.
O karatê "ensina lições muito importantes que vão além de como bater", disse ele, "respeito – o karatê ensina respeito."
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