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Sem documentos, mulheres correm risco de violência de gênero

Comunicados à imprensa

Sem documentos, mulheres correm risco de violência de gênero

26 Janeiro 2022
Bonisiwe olha pela janela do barraco de um cômodo que divide com três de seus filhos no município de Mamelodi, perto de Pretória, na África do Sul. © ACNUR / Hélène Caux

Bonisiwe é atormentada por um pesadelo recorrente sobre Sipho, um ex-parceiro que com uma faca a ameaçou, na presença do seu filho, de abuso físico e psicológico durante anos. Vinte anos se passaram desde a experiência angustiante, mas as memórias ainda estão frescas.

“Lembro-me como se fosse ontem”, sussurrou a senhora de 52 anos enquanto contava como Sipho voltava para casa de mau humor, encontrando defeitos em tudo o que fazia. “Ele me batia com tanta força que me deixava cambaleando. Então ele me socava e me jogava no chão”, acrescenta ela.

A última vez que ele a atacou, ele puxou uma faca. Essa foi a deixa para colocar o bebê S'phamandla nas costas e fugir a noite. Eles passaram aquela noite sob um caminhão quebrado em um ferro velho próximo.

Bonisiwe passou a maior parte de sua vida adulta passando de um relacionamento abusivo para outro - um ciclo vicioso que ela atribui à falta de documentos de identidade e ao fato de não existir legalmente.

Ela nasceu de uma mãe solo doente no município de KwaMashu, em Durban. Sua mãe não registrou seu nascimento e não foi capaz de colocá-la na escola.

“Depois de dois anos na escola primária, tive que desistir para poder cuidar de minha mãe doente. Não tínhamos nada e contávamos com nossos vizinhos”, diz. 

"Ele me batia com tanta força, então me socava e me jogava no chão"

Aos 17, ela teve seu primeiro relacionamento abusivo com um homem de 30 anos e teve um filho com ele, Mthokozisi. “Ele me chamou de boba analfabeta e disse que nenhum homem iria me querer porque eu era feia e ele estava me fazendo um favor”, acrescenta. 

Sua situação reflete a de milhares de mulheres na África do Sul e em todo o mundo.

Uma em cada três mulheres em todo o mundo sofre violência física, psicológica e sexual, principalmente por seu parceiro, de acordo com a ONU Mulheres. A situação é pior para mulheres sem documentos como Bonisiwe, já que muitas vezes relutam em denunciar abusos às autoridades por medo de prisão, discriminação e outros maus tratos. Sem uma prova de identidade que confirme sua nacionalidade, elas não têm acesso às medidas de proteção do governo onde vivem e aos recursos legais que alguém com um documento de identidade nacional poderia recorrer.

Na África do Sul, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) está trabalhando para solucionar as causas profundas da violência de gênero. Uma delas é a falta de documentação.

“Cada palavra, tapa ou soco cruel é prejudicial, e o impacto da falta de documentação alcança muitas esferas”, disse Laura Buffoni, Oficial Sênior de Proteção Comunitária do ACNUR com base em Pretória.

Bonisiwe admite que não teve escolha a não ser ficar com o pai abusivo de seu filho. Ela acabou fugindo com Mthokozisi, seu filho, e se mudou para Pretória para morar com um primo.

“Eu esperava encontrar oportunidades para uma vida melhor e presumi que teria uma chance melhor de conseguir documentos legais”, explica.

Em vez disso, sua vida foi repleta de frustração e decepção. Ela logo brigou com seu primo, que os expulsou e ela acabou em outro relacionamento abusivo.

Em 2018, Bonisiwe tinha cinco filhos de pais diferentes. Sua situação chamou a atenção de assistentes sociais comunitários em Mamelodi, o município de Pretória onde ela mora.

“Ela ficou muito traumatizada”, disse Nomsa, uma das assistentes sociais que cuidava de seu caso. “Sua incapacidade de obter uma certidão de nascimento só piorou a vida.”

O parceiro jurídico do ACNUR, os Advogados pelos Direitos Humanos, lançou sua Unidade de Apatridia em 2011 depois de ver um aumento no número de clientes que precisam de aconselhamento jurídico sobre o acesso à nacionalidade. 

Por meio de assistência jurídica direta, litígio estratégico, defesa e treinamento, a organização equipou assistentes sociais comunitários com informações críticas, processos jurídicos e procedimentos para ajudar seus clientes. 

“Acompanhamos Bonisiwe oito vezes ao Departamento de Assuntos Internos em Pretória e Durban, onde foi solicitado que ela pedisse o registro de nascimento tardio”, acrescenta Nomsa, observando que o processo tem sido extremamente desafiador.

Para Bonisiwe provar sua reivindicação de nacionalidade sul-africana, ela precisa apresentar vários documentos que incluem uma notificação de nascimento, uma justificativa, seus dados biométricos e as impressões digitais e documentos de identidade de seus pais - uma tarefa árdua, uma vez que ela só pode fornecer uma carta assinada da autoridade tradicional local confirmando seu nascimento e ela não tem nenhum membro da família com quem possa fazer um teste de DNA para provar sua identidade.  

“Eu tentei de tudo. Estou presa. Estou com vontade de desistir”, chora Bonisiwe, que já pensou em suicídio.

“Um dia, espero conseguir a documentação para viver com dignidade”

Nomsa enfatiza que seu escritório não desistiu. “Continuaremos trabalhando com Bonisiwe e a encorajamos a acompanhar o processo”, diz. 

Buffoni, do ACNUR, observa que esses esforços coletivos e combinados para resolver o problema podem ajudar a proteger as mulheres do risco de abuso e violência. “Pedimos que o Governo preste atenção especial a esta situação porque ela pode ser revertida”, diz.  

Bonisiwe atualmente mora com três de seus filhos em uma cabana apertada de um cômodo e depende de seus dois filhos mais velhos, Mthokozisi e S'phamandla, que trabalham em bicos. 

“A vida é difícil, mas vou ficar bem”, diz. “Um dia, espero conseguir a documentação para viver com dignidade.”