Escassez de chuva gera conflito e deslocamento em Camarões
Escassez de chuva gera conflito e deslocamento em Camarões
A mais de 7.000 quilômetros de Glasgow, onde foi realizada a COP26, Robert Mati, 62, ainda está se recuperando de um conflito relacionado ao clima em sua aldeia, na região do Extremo Norte de Camarões, há dois meses.
Caminhando cambaleante pelas ruínas de sua casa queimada, Mati murmura: “Eles nos pegaram, eles nos pegaram”.
“Eles” são os pastores árabes Choa. Suas relações com os pescadores e fazendeiros Musgum, o grupo étnico ao qual Robert pertence, se deterioraram à medida que as chuvas diminuíram na planície de inundação de Logone-Birni, secando os rios e as lagoas sazonais dos quais ambas as comunidades dependem para seu sustento.
Diante das mudanças climáticas, ficar parado não é uma opção. Você pode ajudar!
Os Musgum responderam cavando vastas bacias para reter água - e peixes - na estação seca. Mas esses reservatórios profundos, tão necessários para os Musgum, criam armadilhas mortais para o gado pertencente aos pastores árabes Choa. Os animais escorregam pelas encostas íngremes, quebram as pernas e às vezes se afogam.
Foi um desses afogamentos que desencadeou o ataque a Missika, a aldeia de Robert, no dia 10 de agosto. “Os pastores vieram preencher os buracos que havíamos cavado”, diz ele. “Na verdade, eles queriam que nós tapássemos os buracos no mesmo dia. Se não fizéssemos isso, estaríamos mortos, eles disseram”.
Os confrontos que se seguiram entre pastores e pescadores deixaram 45 mortos e 74 feridos. Dezenove aldeias foram incendiadas e mais de 23.500 pessoas foram forçadas a fugir.
Inicialmente, 13.000 pessoas fugiram pelo rio Logone rumo ao Chade. Dois meses depois, 4.000 retornaram, enquanto cerca de 9.000 permaneceram no Chade. Em colaboração com outras agências da ONU, ONGs parceiras e autoridades chadianas, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) está fornecendo abrigo, cuidados de saúde e outras necessidades básicas.
“Eu não quero voltar até que a verdadeira paz seja restaurada”
Assiam Yere, uma refugiada Musgum de 55 anos no Chade, diz que viu nove jovens de sua comunidade mortos diante de seus olhos. “Estou traumatizada e não quero voltar até que a verdadeira paz seja restaurada”, diz ela.
Por enquanto, uma calma precária prevalece no Extremo Norte de Camarões. As autoridades camaronesas organizaram várias reuniões entre os líderes das duas comunidades, que assinaram um acordo informal de paz em 14 de agosto. Todas as 12.500 pessoas que fugiram dos confrontos de agosto e permaneceram no país voltaram para casa desde então, mesmo que muitas delas ainda temam um ressurgimento da violência.
“Atualmente, todo mundo está com medo. À noite, quando você está na cama, não há sono”, diz Issa Mahmat, um aldeão Choa árabe de 45 anos que voltou para casa há algumas semanas.
Sua aldeia, localizada a poucos quilômetros de Missika, também foi parcialmente destruída. Ele não quer guardar rancor dos vizinhos, mas reconhece que a causa do problema não foi embora.
“Encontrar água tornou-se muito difícil. Temos que cavar e usar bombas motorizadas para retirá-la de baixo da planície de inundação”, explica ele.
A região do Sahel foi duramente atingida pelas mudanças climáticas. As temperaturas estão subindo mais rápido do que a média global, e a ONU estima que 80% das terras agrícolas estão degradadas.
“Não sei a causa das mudanças climáticas, mas temos que nos adaptar para reter os peixes durante a estação seca”, explica Assiam Yere, refugiada Musgum. “O rendimento de nossas safras realmente não é suficiente”.
Além de suas preocupações com a segurança, o baixo rendimento de suas terras é outra razão pela qual ela está adiando seu retorno para casa. A maioria dos refugiados compartilha do medo de que passem fome se voltarem, principalmente porque suas colheitas foram abandonadas desde a fuga.
Aqui, a mudança climática é a causa raiz do deslocamento e um fator principal que impede as pessoas de retornar.
“Costumava haver bastante água, mas não mais”
“Não há nada verde este ano”, disse Aboukar Mahamat, coordenador de uma ONG camaronesa, Alliance for the Development of Environmental Education. “Existem dezenas de aldeias em Logone-Birni onde as pessoas não colheram nada, seja arroz, milho ou painço".
Ele acrescenta que grandes grupos de pastores que normalmente permanecem na Bacia do Lago Chade chegaram à planície de inundação de Logone este ano.
“Neste ano e nos próximos, podemos esperar tensões ao redor dos locais com água e várzeas, à medida que todos convergem para lá”, prevê ele.
“A tragédia em Logone-Birni ilustra o que pode se tornar realidade em uma escala muito maior nas próximas décadas se nada for feito para conter a maré”, disse Olivier Beer, Representante do ACNUR em Camarões. “A influência do clima nos conflitos deve ser analisada e medidas acordadas com os atores do desenvolvimento que operam na região”.
O ACNUR realizará em breve dois fóruns de paz que reunirá membros das comunidades de Musgum e Choa e as autoridades para promover a coexistência pacífica.
Por enquanto, não há um plano viável para devolver a água à área de Logone-Birni. “Costumava haver bastante água, água para todos, mas não existe mais”, diz Ousman Mazoumai, chefe da aldeia de Missiska. "Só Deus sabe porquê".