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Entre arepas e literatura, Marifer Vargas leva solidariedade a seus conterrâneos

Comunicados à imprensa

Entre arepas e literatura, Marifer Vargas leva solidariedade a seus conterrâneos

30 Junho 2021
Marifer passou um ano sem se alimentar corretamente para garantir que sua mãe e filha pudessem comer todos os dias. © ACNUR /Érico Hiller

O dia 2 de agosto de 2017 é inesquecível para Marifer Vargas. Após sofrer perseguição política na Venezuela, enfrentar um sequestro e ficar afastada por um ano e meio de seu marido, ela e a filha Miranda, com 12 anos na época, chegavam ao Brasil para recomeçar. 


“Eu me lembro muito bem a data porque é como se fosse nascer de novo”. Professora de História e Geografia em uma escola em Maracay, Venezuela, Marifer era apaixonada pelo seu trabalho, bairro e cultura de seu país. Porém, tudo mudou a partir de março de 2016, quando ela e sua família enfrentaram situações extremas e ficaram sem opção a não ser fugir. 

Tudo começou quando seu marido Carlos, na época repórter de uma emissora de televisão, foi sequestrado após realizar uma reportagem denunciando fatos de corrupção no governo venezuelano. A partir de então, as coisas nunca mais foram as mesmas.

“Primeiro começaram as ameaças e muitas coisas que não tinham o porquê de acontecer. Nossas vidas estavam em risco, principalmente a dele”, relembra Marifer. Após o sequestro, Carlos foi o primeiro a vir para o Brasil, mas só reencontraria sua família um ano e meio depois. 

Durante este período separados, Marifer e Miranda, que ficaram na Venezuela, viram a situação do país se deteriorar cada vez mais. Quando percebeu que o futuro de sua filha estava ameaçado e que ela não teria tantas oportunidades para crescer, se desenvolver ou até mesmo escolher o que estudar, Marifer viu que era hora de cruzar a fronteira e se juntar ao companheiro no Brasil. 

"Filha, a gente vai embora porque precisa"

“Na minha época, eu podia escolher o que iria estudar. Pensar diferente e falar o que eu achava certo era respeitado. E eu vi que minha filha não teria essa possibilidade. Então, eu me sentei com ela, em sua maturidade de 12 anos, e expliquei: 'filha a gente vai porque a gente precisa’”. 

Logo que chegou ao Brasil elas foram acolhidas pela Casa do Migrante, em São Paulo. Mesmo deitada em uma cama que não era sua, dividindo o quarto com outras 20 mulheres e exausta após a longa jornada, Marifer relembra a emoção de olhar para sua filha e se sentir segura e tranquila. “Eu jurava que o cheiro da cama era o cheiro da minha mãe - e se isso não é acolhedor eu não sei mais o que é”, diz. 

Enquanto Carlos procurava emprego e sua filha ia à escola, Marifer ficou responsável por encontrar um lar para sua família em São Paulo. Após alguns meses, encontrou a casa onde iria construir sua vida no Brasil. Pouco a pouco, a sala e a cozinha eram preenchidas com móveis e eletrodomésticos doados por seus amigos e colegas brasileiros.

Após se estabelecer, Marifer teve a possibilidade de retribuir toda a ajuda que recebeu quando chegou ao Brasil. Primeiro, atuou como educadora social do programa PANA da Cáritas Brasileira e Cáritas Suiça, recebendo venezuelanos que tinham sido realocados de Roraima para São Paulo por meio da estratégia e interiorização da Operação Acolhida, realizada em parceria com o ACNUR. “Eu recebia essas pessoas como se os abrigos fossem uma casa, fazia até o café da manhã. Eu pude me reconhecer naquelas famílias, nessas pessoas, de me reconectar com minha língua e com a situação que está acontecendo lá”, relembra. 

Apesar de ainda não ter conseguido reconhecer seu título de professora de História e Geografia, Marifer descobriu talentos além da sala de aula. Ela percebeu, por exemplo, sua habilidade com pessoas e de gerenciar negócios. Passou então a atuar como consultora de empreendedorismo da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, auxiliando refugiados obterem os documentos necessários para começar o seu negócio.

Marifer ajuda pessoas refugiadas nos processos burocráticos para tirar a carteira de trabalho, realizar cadastro como Microempreendedor Individual (MEI) e também realiza consultorias e cursos de capacitação para ajudá-las a se recolocarem no mercado de trabalho brasileiro e a alcançar sua autonomia financeira.

E não para por aí! Após a experiência de seu marido como auxiliar de cozinha no Brasil, o casal percebeu uma outra paixão: a culinária. Foi assim que criaram o Nossa Janela, uma empresa de catering de comida venezuelana orgânica para empresas e eventos. Com a pandemia, foi preciso se readaptar e pensar em outras maneiras de continuar com o projeto. Uma dessas reinvenções veio graças à parceria do ACNUR com a organização IKMR. Em meados de 2020, o Nossa Janela foi uma das empresas contratadas para distribuir 40 toneladas de comida para pessoas em situação de rua. 

“Para mim é muito importante estender a mão para quem me ajudou também. E não digo isso só em relação aos meus compatriotas, mas em relação a todo mundo que um dia já nos apoiou. Porque ninguém quer estar em situação de refúgio”, afirma. 

Fã de longa data de Isabel Allende, escritora chilena que fugiu da Ditadura Militar em seu país, Marifer descobriu na literatura outra maneira de levar a solidariedade aos seus colegas venezuelanos no Brasil e outros migrantes e refugiados que também sentem falta da língua espanhola. Após encontrar algumas versões em espanhol dos livros da autora, ela percebeu como sua língua nativa fazia falta em seu dia a dia e criou um projeto no Instagram para ler trechos dos livros de Allende para aqueles interessados pela literatura latino-americana.

Após quatro anos no Brasil, Marifer ainda sente falta da Venezuela. Nestes momentos, ela acha refúgio para sua saudade nos momentos em que se cerca da língua espanhola: seja através do ritmo da salsa brava, das palavras de Isabel Allende, dos breves instantes em que escuta um sotaque "portunhol" na rua ou, na maioria das vezes, quando está ao lado de outros refugiados e consegue ajudá-los a se sentirem acolhidos como um dia ela mesma foi.