"Minha história é a voz daqueles que não tiveram oportunidade de falar"
"Minha história é a voz daqueles que não tiveram oportunidade de falar"
Se descrevendo como "brasi-sírio", uma mistura entre brasileiro e sírio, Abdulbaset Jarour, ou apenas Abdul, é apaixonado pela cultura do Brasil e seu amor pelo país vai da gastronomia ao esporte. Ele é apaixonado por açaí, caldo de cana e torce pelo Corinthians.
"O Brasil me abriu as portas e, por isso, fiz questão de me esforçar para estudar sobre este país, de fazer amizades e abraçar sua cultura que é uma mistura. No rosto de cada pessoa está a origem dessa nação tão diversa. Se eu ficar calado, ninguém percebe que não sou, de fato, brasileiro - mas se estivesse na Alemanha, iriam dizer “Esse baixinho barbudo não é daqui, não!”. E não sou, realmente.
Eu nasci em Alepo e vivenciei a Guerra na Síria, sendo o único sobrevivente de um ataque onde morreram todos os meus amigos. Quando jovem, fui obrigado a servir ao exército e percebi que a situação estava piorando a cada dia. Fiquei com medo ao saber que, ao tentar fugir atravessando em botes para Turquia e Grécia, os sírios estavam morrendo afogados.
O episódio violento que vivi foi tão extremo que, ainda me recuperando dos machucados, continuei buscando alternativas para encontrar um lugar seguro e fui aceito pelo Brasil com um visto humanitário. Fiquei aliviado em saber que estava longe do perigo e, ao mesmo tempo, confiante por saber que São Paulo tem uma comunidade árabe forte. Mas, quando cheguei, entendi que os desafios seriam tão grandes quanto esse novo país.
Neste país continental, eu fiquei perdido. Não falava nada de português e me disseram que sem saber a língua era impossível conseguir trabalho. Só recebi informação quando cheguei à Caritas Arquidiocesana de São Paulo, organização parceira da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), que me orientaram no processo de documentação.
Tiveram muitos momentos difíceis, em que achei que levaria minhas coisas para a rua, mas um amigo me ajudou e me levou para ficar na casa dele. Esses auxílios me trouxeram mais força para alcançar minha autonomia e levantar outros que estavam com dificuldades parecidas. Eu não desisti.
Enquando me capacitava em cursos de empreendedorismo, cultura brasileira e organização de projetos sociais, eu trabalhava como motorista de aplicativo. Também montei um hostel de acolhimento à comunidade árabe, coordenei a Copa dos Refugiados e integrei o Sarau dos Refugiados com músicas e poesias.
Além disso, atuei como Consultor Cultural participando de diversos trabalhos como consultor sobre refúgio para obras como "Órfãos da Terra" (Rede Globo), “Os Ausentes” (TNT) e “Aleppo” (David Schurmann).
Até recebi uma proposta do SESC (Serviço Social do Comércio) para dar palestras. Já imaginou dar palestra sem saber falar a língua? Mas foi com essa experiência que pude idealizar o Salaam Aleikum, um projeto para escolas e universidades com o objetivo de trazer visibilidade a outros refugiados por meio da minha história e cultura.
Fui contratado por instituições de ensino, o que melhorou muito minha renda e tornou possível pagar meu aluguel. Eu também fui em escolas públicas pois, mesmo que elas não conseguissem me pagar, sabia da importância em levar esse conhecimento para lá. Hoje, através de palestras com o foco em abraçar a cultura brasileira, eu capacito migrantes e refugiados a se desenvolverem.
Esses auxílios me trouxeram mais força para alcançar minha autonomia e levantar outros que estavam com dificuldades parecidas
Dessa maneira, eu consegui realizar meu maior sonho: trazer minha mãe, irmã e irmão, já que as minhas irmãs fugiram para outros países. Minha mãe veio ao Brasil para fugir da guerra, mas em seu coração tinha o desejo de voltar para casa.
Apesar dos meus esforços em integrá-las à sociedade brasileira e à comunidade árabe, elas continuavam tristes, deprimidas e falando sempre em retornar, pois sentiam dificuldade em se adaptar e praticar a sua cultura e hábitos religiosos no Brasil.
Conversamos bastante sobre o assunto e concluímos que o único lugar no qual um sírio consegue chegar é o Líbano e eu, dentro da minha condição financeira, continuaria a ajudá-las à distância.
Assim, comecei a dar os primeiros passos para que isso acontecesse e dei entrada no pedido de renovação do passaporte da minha mãe. Porém, neste momento a pandemia da Covid-19 fechou as fronteiras do mundo e nos obrigou a ficar em quarentena. Apesar de todos os cuidados e precauções, minha mãe infelizmente adquiriu esse vírus e faleceu no dia 13 de maio de 2020.
O povo sírio é guerreiro, forte e não deveria ser forçado a sair para sobreviver; merecemos democracia e liberdade. Nós fugimos da morte, mas a morte nos perseguiu e nos alcançou aqui no Brasil. Todo refugiado deixa o seu país e sua casa fugindo da guerra, perseguições e violência e busca proteção para salvar a sua vida. Mas, para onde quer que vá, carrega a chave do seu lar porque sonha em retornar um dia.
A minha mãe trouxe a chave da casa dela porque sonhava em voltar para casa, mas não conseguiu. Ela escolheu a Síria para nascer e o Brasil para viver eternamente.
Eu ainda tenho o sonho de voltar e ajudar a reconstruir a Síria. Enquanto isso, pretendo ser o primeiro refugiado a concorrer a um cargo político no Brasil para discutir e fortalecer ainda mais as políticas públicas e buscar a equidade como seres humanos que fazem parte da mesma sociedade.
Ainda não temos refugiados e imigrantes fazendo parte da Frente Parlamentar e sei que a minha história representa muitas outras que não puderam ser contadas. Minha história é a voz daqueles que não tiveram oportunidade de falar. Ela é um testemunho de superação, esperança e fé.
A minha mãe trouxe a chave da casa dela porque sonhava em voltar para casa, mas não conseguiu. Ela escolheu a Síria para nascer e o Brasil para viver eternamente
Um dia, ouvi uma letra de música que dizia: “Quando o medo se apossou trazendo guerra sem sentido, a esperança aqui ficou, segue vibrando e me fez lutar para vencer, me levantar e assim crescer (...). Vou reerguer o meu castelo, reconquistar o que eu perdi”. Foi a primeira vez que eu conheci o trabalho da cantora Iza. Eu me emocionei muito com essa canção porque me fez lembrar a luta que passei.
Por isso, me senti muito honrado de ter sido chamado para ser um dos integrantes do clipe "Let me be the One". Foi uma experiência máxima de felicidade porque eu nunca tinha participado de um videoclipe, mas também pelo propósito do vídeo em passar a mensagem de igualdade e pluralidade. Essa aproximação faz muita diferença para nós refugiados, que somos considerados minoria e precisamos de visibilidade e oportunidades. Quando colocamos em debate esses valores, o benefício é de todos.
Minha história é a voz daqueles que não tiveram oportunidade de falar. Ela é um testemunho de superação, esperança e fé
Vivemos um período triste de guerra, desigualdade social, violência. Existe muito sofrimento pelo mundo e o ser humano foi corroendo essa terra tão bonita que temos. Precisamos enfrentar esse momento pela união e com um trabalho pequeno, como o da formiga, você pode fazer a diferença. Já é hora dos povos exercitarem a empatia para construirmos um futuro melhor.
Minha religião é o amor, minha raça é a humanidade, minha pátria é o mundo, somos todos filhos da mesma terra e cidadãos do mundo. A mudança começa dentro de nós."
Dez anos se passaram desde o início da crise na Síria, mas os sírios ainda estão lutando para lidar com seus impactos
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