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“Consideramos que vivemos um milagre todos os dias”

Comunicados à imprensa

“Consideramos que vivemos um milagre todos os dias”

22 May 2019
Francisco mostra a sandália que usava durante a caminhada da Venzuela até o Brasil. © ACNUR/João Paulo Machado

Já era noite quando a amazonense Irajane Souza recebeu uma ligação do seu irmão, que trabalha no Aeroporto Internacional de Manaus: uma família de 17 venezuelanos acabara de constatar que haviam sido enganados. Os bilhetes aéreos que haviam comprado eram falsos, e não teriam como continuar sua viagem. Seu irmão queria ajudar aquela família, mas não sabia como.


Como grande parte dos cerca de 3,7 milhões de venezuelanos que já saíram do país em busca de proteção e uma chance de recomeço, a família havia vendido todos os seus pertences para comprar as passagens e não trazia consigo nada além de alguns itens.

Quando recebeu a ligação, em agosto de 2017, Irajane estava no grupo de estudos bíblicos do qual participa com jovens manauaras. Ao compartilhar a notícia, os amigos se mobilizaram para abrigar a família. “Na hora, olhamos uns para os outros e decidimos: vamos trazê-los para cá!”, afirmou Caio Andrade, voluntário do Oásis, advogado e integrante do grupo de estudos. Naquela noite, os 17 venezuelanos dormiram provisoriamente no escritório de um dos integrantes e, na noite seguinte, em um hotel pago pelos integrantes do grupo de estudos.

Além de abrigar a família, Irajane e seus amigos também se mobilizaram para atenuar seu prejuízo financeiro. Em menos de 48 horas, 17 novas passagens foram compradas, e a família estava pronta para seguir viagem. Irajane, que trabalha no setor de turismo, encontrou passagens baratas e acionou amigos e parceiros, que doaram dinheiro e milhas aéreas para que a família pudesse seguir viagem.

Este foi o primeiro de outros casos de famílias venezuelanas, mas foram enganadas em um esquema de venda de passagens falsas e não puderam fazer a conexão no aeroporto de Manaus. “O pessoal do aeroporto ficou conhecendo a gente, então cada vez que chegava um grupo eles ligavam para nós”, relata Irajane. Até agora, ela e sua rede de amigos já ajudaram mais de 200 venezuelanos.

Desde o episódio, Irajane e seus amigos começaram a oferecer comida, itens básicos de higiene, roupas e abrigo em suas casas aos venezuelanos vivendo em situação de vulnerabilidade na capital amazonense. O envolvimento do grupo continuou a crescer à medida em que mais e mais venezuelanos chegavam à cidade, e hoje coordenam a casa de acolhida Oasis, na região centro-sul de Manaus. “Daí surgiu nossa motivação de ter um espaço de acolhimento”, conta Irajane.

Oasis

Pilotada por Irajane, Soraya, Isabela, Magali, Jhonatas e Amáliaa, a casa de acolhida foi inaugurada em agosto de 2018. “Um dia antes de conseguirmos a casa, tínhamos 6 pratos, 3 panelas e um refrigerador pequeno”, relembra Irajane. “Conforme os itens iam chegando, as famílias foram sendo acolhidas. E assim foi. Hoje temos a casa completa. Freezer, geladeira, os ares condicionados acabaram de chegar. Tudo por doação. Temos um espaço para eles estudarem, comida para todas as refeições. Cada dia chega algo novo, e justamente o que estava faltando. Realmente, a gente considera que vivemos um milagre todos os dias”, comemora.

De acordo com os dados oficiais da Polícia Federal, em 2018 o total de 10.500 pessoas solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado no Estado do Amazonas, tornando o segundo Estado brasileiro com maior número de solicitações (atrás apenas de Roraima). Iniciativas de organização da sociedade civil são parte significativa do processo de acolhida, abrigamento e integração local.

Desde sua abertura, o abrigo se mantém por meio de doações voluntárias e a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) apoia a casa por meio de doações de produtos necessários e no acompanhamento de casos de proteção.

Desde sua abertura, 90 pessoas já foram abrigadas pelo grupo e, atualmente, cerca de 40 famílias fora do abrigo continuam sendo apoiadas pelo Oasis. Lá, receberam assistência psicológica e foram orientados sobre regularização de documentos e inserção sociolaboral. Irajane, Soraya, Isabela e outros voluntários trabalham diariamente para construir um ambiente acolhedor e seguro para as crianças e adultos que, pouco a pouco, conseguem ressignificar e superar as dificuldades do caminho até o Brasil.

Atualmente, vivem na casa 13 adultos e 7 crianças venezuelanas, incluindo dois recém-nascidos. Grande parte das famílias abrigadas estavam vivendo em situação de rua, como o engenheiro de gás e petróleo Francisco, 27, e a estudante de medicina Sofía, 20. Eles foram resgatados pela equipe do Oasis na rodoviária de Manaus em setembro de 2018, onde dormiram por cinco dias e não tiveram quase nenhuma refeição. Eles vieram para a cidade depois de dormirem um mês em uma barraca em Boa Vista e terem todos os seus pertences roubados.

“Conseguimos caronas de Boa Vista até aqui. Saímos de lá porque perdemos tudo o que tínhamos”, disse Francisco. “Uma noite, depois de tentarmos ganhar dinheiro vendendo chiclete na rua, voltamos para a barraca e vimos que a porta estava escancarada: tinham levado tudo o que tínhamos. Roupas a gente consegue comprar de novo. Mas, nossos documentos, não. Nossas identidades venezuelanas, meu diploma de engenharia, meus antecedentes criminais da Venezuela e do Brasil... O pré-natal dela, o certificado de ingresso na faculdade de medicina... tudo”, lembra o jovem, inconsolado.

Quando chegou ao abrigo Oásis, Sofía estava grávida de 6 meses e, a partir de então, encontrou condições para cuidar de si e de sua gravidez, que foi diagnosticada como de risco. “Eu caminhei demais para chegar no Brasil. Muito, muito mesmo. Até que comecei a sentir contrações. Aqui em Manaus, o médico disse que era por conta de tanto caminhar. Ele me indicou repouso total, e por causa do abrigamento pode fazer isso”.

Após concluírem a estadia prevista de três meses, a Francisco conseguiu emprego formal e família pode mudar-se para sua própria casa, onde seu filho nasceu com segurança. Segundo Sofía, deixar a família na Venezuela foi o mais difícil. “Só viemos nós dois, pensando em nosso filho. Queríamos ficar, mas nosso dinheiro não dava para nem para comer, imagina comprar fraldas?”, disse. Recentemente, conseguiram financiar a vinda sua mãe e de Francisco para o Brasil em segurança.

Em meio a tantas adversidades, a casa de acolhida se tornou um verdadeiro oásis manauara na dura e turbulenta jornada de venezuelanos que buscam um lugar seguro para viver. Além dos atuais 20 moradores, durante o dia a casa recebe diversos visitantes venezuelanos que participam das refeições, preparadas coletivamente, e assistem às aulas de português, ministradas por um voluntário diferente cada dia da semana.

Caio é um dos voluntários e entusiastas do projeto. Além de doar uma hora de sua semana para as aulas com os adultos, ele apoia diversas demandas da casa e ajuda a mobilizar mais voluntários para compor a rede de acolhida. “Eu consegui incluir até minha mãe no projeto. Ela é professora aposentada, e estava em casa sem fazer nada. Agora, ela vem toda segunda-feira dar aulas. É muito pouco que a gente doa, mas significa muito para quem recebe”, afirma o advogado.

O programa de aulas de português foi elaborado por uma voluntária pedagoga, e tem como objetivo promover a troca entre a cultura venezuelana e brasileira, e também ajudá-los na integração sócio laboral. “Não é um processo de desapropriação da cultura deles, é o acréscimo de uma nova cultura”, afirma Caio. “Temos o cuidado de não tirar a Venezuela deles, porque é deles. Mas de incluir o Brasil. Sempre dizemos: ‘Se um dia você puder voltar, você terá essa bagagem. Mas, agora, vocês têm a oportunidade de ter mais um país te dando suporte’”, conclui.

Com planos para o futuro, o grupo está usando a criatividade e a união para conseguir pagar as contas fixas, como água, energia e gás no final de cada mês. Com a doação de um fogão industrial e mais uma geladeira, um dos cômodos da casa está se tornando uma cozinha na qual os abrigados e voluntários irão começar um pequeno empreendimento de entrega de marmitas no horário comercial de almoço.  “Queremos aproveitar que estamos em uma área com muito comércio para incentivar a geração de renda e autonomia das famílias”, conclui.

Para Irajane, o mais gratificante é ver que os moradores do abrigo conseguem recuperar a autonomia e auto-estima. “Eles deixam para trás muito mais do que coisas materiais. Eles deixam famílias, eles deixam sonhos, o trabalho de uma vida inteira. As pessoas que acolhemos aqui chegaram com o olhar perdido, desesperado... E no dia-a-dia a gente percebe a transformação em cada um, porque eles sentem que são acolhidos, e sabem que tem pessoas que se importam”.

 

Apoiando o ACNUR você ajuda venezuelanos a reconstruirem suas vidas no Brasil. Doe agora!

 

 

(*) Nomes trocados por motivos de proteção.