Close sites icon close
Search form

Pesquisar o site do país.

Country profile

Country website

"Em toda a minha vida, não tive nem cinco minutos de paz"

Comunicados à imprensa

"Em toda a minha vida, não tive nem cinco minutos de paz"

12 Julho 2018
O refugiado rohingya, Oli Ahmed, de 53 anos, posa para uma foto no abrigo que divide com quatro gerações de sua família no assentamento de refugiados de Kutupalong, em Bangladesh. © ACNUR/Roger Arnold
Com a idade em evidência em seus olhos, Gul Zahar, de 90 anos, faz um retrospecto das injustiças que assolaram sua vida e de sua família.

Em Mianmar, eles não tinham direitos básicos ou liberdade. A primeira vez que Gul foi forçada a fugir para Bangladesh foi em 1978. Fugiu novamente em 1991 e mais uma vez em agosto do ano passado, quando sua aldeia foi incendiada em um ataque mortal.

Agora bisavó, ela vive em um abrigo de um quarto em um assentamento de refugiados de Bangladesh com quatro gerações de sua família. "Tem sido uma vida de tristeza", diz ela.

Gul e seus parentes estão entre os cerca de 700 mil rohingya forçados a fugir de Mianmar para Bangladesh desde agosto de 2017. A violência que os levou até lá nos últimos meses é uma continuação de décadas de profunda repressão e exclusão social em sua terra natal, onde carecem de cidadania.

O filho de Gul, Oli Ahmed, de 53 anos, explica como ser apátrida sufocou suas vidas diárias.

"Nós não podíamos nos mover livremente ... Não podíamos visitar nossos vizinhos. Era um sofrimento intolerável.”

"Nós não podíamos nos mover livremente ... Não podíamos visitar nossos vizinhos. Era um sofrimento intolerável”, diz Oli, um fazendeiro que forçado a se deslocar para Bangladesh pela primeira vez em 1991. “Nós cultivamos vegetais, mas não podíamos ir ao mercado para vendê-los. Quando conseguíamos ir ao mercado, nossos produtos eram vendidos por preços baixos.”

Pelo menos 10 milhões de pessoas em todo o mundo não têm nacionalidade e, consequentemente, enfrentam impedimentos e desigualdades durante a vida toda. Os rohingya são, de longe, o maior grupo de pessoas apátridas. Nascidos e criados em Mianmar por várias gerações, eles não conhecem outro lugar para chamar de lar.

A refugiada rohingya Ayesha Begum, de 40 anos, posa para uma foto no abrigo da família em Bangladesh. © ACNUR/Roger Arnold

 

Oli diz que as restrições impostas à sua comunidade incluíam bloqueios de estradas, e um toque de recolher entre 18h e 6h da manhã. Durante o período, a família não podia sequer ascender uma vela em casa.

Sem acesso ao sistema bancário, eles viviam uma existência precária. “Vivíamos em um nível puramente físico, apenas lutando pela nossa sobrevivência. O que ganhávamos em um dia não era suficiente para sobreviver”, diz ele.

Para a esposa de Oli, Ayesha Begum, de 40 anos, a pobreza e as restrições à liberdade de movimento significava que ela não podia procurar atendimento médico quando estava grávida de seus filhos.

"Eu tive febre e dores de cabeça, mas tinha tanto medo que não ousei ir ao hospital", diz ela, sentada no chão do abrigo de bambu da família, ao lado de seu genro Mohammad Ayub, 31.

Mohammad, que foi forçado a fugir para Bangladesh quando criança em 1991, relembra o desejo de contribuir para a vida civil em Mianmar. "Ser apátrida significa não poder fazer parte do meu país", diz ele. "Eu não podia entrar para o exército ou frequentar a escola. Queremos fazer parte do nosso país em todos os aspectos, se tivermos a oportunidade. Isso me daria dignidade”.

 

Sentado com sua filha de três anos, Kismat Ara, no seu colo, ele tenta medir sua angústia. “Um dia é composto de 24 horas. Mas eu não encontrei nem mesmo cinco minutos de paz”, diz ele. “Isso é o pior de tudo. Desde o início da minha vida, não tive nem cinco minutos de paz.”

Ao lado dele no chão do abrigo está sentado seu cunhado, Mohammad Siddiq, de 25 anos, que sonhava em se tornar professor. Mas sem direitos básicos, ele nem sequer conseguiu se matricular como estudante em sua terra natal.

"Não tínhamos permissão para ir às escolas oficiais", diz ele, lembrando que ocasialmente ele tinha aulas durante os meses das monções. “Mas quando o ano seguinte chegou, eu tinha esquecido o que aprendi. Eu quero conseguir um emprego, ser professor, ajudar os outros, mas como posso fazer isso? Eu não sei ler nem escrever. Eu não tenho mais esperança. Eu desisti dela.”

Quando a aldeia da família foi atacada em agosto, eles não tiveram como recorrer à justiça. Mais uma vez, a única escolha possível foi fugir.

Oli Ahmed, 53, sua mãe, Gul Zahar, 90, e seu filho, Mohammad Siddiq, 25, posam para uma foto no abrigo da família em Bangladesh. © ACNUR/Roger Arnold

 

As autoridades de Bangladesh e Mianmar assinaram um acordo sobre o repatriamento voluntário em novembro de 2017. Nos últimos meses, o ACNUR assinou dois memorandos de entendimento, um com Bangladesh e outro com Mianmar, estabelecendo a estrutura para que os retornos voluntários estejam alinhados com os padrões internacionais. Mas o ACNUR acredita que as condições ainda não são propícias para o retorno dos rohingyas, uma vez que as causas que os levaram a fugir não foram abordadas e nenhum progresso substancial foi feito no tratamento de sua exclusão ou negação de seus direitos. Sem acesso à cidadania, a maioria da família de Gul não pensará em voltar para sua terra natal.

"O que eu sei é que não vou voltar", diz Oli Ahmed. “Eu quero que minha voz seja ouvida. Quero que a paz seja restaurada e quero cidadania. A cidadania é fundamental para tudo: paz, segurança e educação. ”

“Eu quero que minha voz seja ouvida. Quero que a paz seja restaurada e quero cidadania.”

Mohammed Ayub concorda: “A primeira coisa de que precisamos é o reconhecimento de que somos rohingya e também fazemos parte de Mianmar. E, depois, precisamos de acesso total aos nossos direitos, e além da restituição completa de tudo o que perdemos”, diz ele.

"Sem cidadania, eu não vou voltar... Já sofremos o suficiente", ele acrescenta.

Aos 90 anos, Gul sente-se diferente, embora esteja grata pela segurança que Bangladesh oferece. "Eu não estou disposta a morrer aqui. Eu quero morrer na minha terra”, diz ela.