Homens e mulheres fogem da violência sexual no Burundi
Homens e mulheres fogem da violência sexual no Burundi
Tanzânia, 31 de maio de 2016 (ACNUR) - Mesmo antes de contar sua história, a violência pela qual Nicole passou no Burundi já é visível em sua pele. A marca da facada na barriga, o corte do tamanho de um dedo em seu pescoço e a cicatriz em seu couro cabeludo feito por outros golpes de faca. Queimaduras marcam seus braços e pernas, e alguns de seus dentes já não existem, foram arrancados a socos.
Sua viagem para o inferno começou com as rondas diárias da milícia do partido thuggish no poder, o Imbonerakure. Ela percebeu que aconteceria quando o dono das terras onde ela trabalhava foi incapaz de pagar os 10.000 francos burundeses (6,50 dólares) exigidos pelos milicianos, que portavam armas e facões. Foi um erro fatal.
"No dia seguinte, fomos levados para o rio para encontrá-lo", disse ela, parando para tomar um copo de água. "Ele havia sido esfaqueado na cabeça e nas laterais de sua barriga. Sua esposa tivera os seios arrancados e estava aberta por um corte que ia desde seus órgãos genitais até a cabeça", acrescentou ofegante. "As crianças simplesmente tiveram suas gargantas cortadas".
Naquele momento, Nicole* sabia que tinha que reunir seus três filhos e fugir. Eles já estavam quase chegando na fronteira com a Tanzânia quando um grupo de policiais e milicianos Imbonerakure os abordaram. As ordens eram claras, "matar ou bater em qualquer pessoa que tentasse cruzar a fronteira", disse ela.
Com a prisão local cheia, ela e cerca de outras sessenta pessoas foram levadas para um centro de detenção nas proximidades. Ela conta que lá, o procedimento era ser severamente espancado por ter tentado deixar o Burundi. "Havia até uma mulher que estava carregando um bebê de colo e bateram tanto nele que ele morreu", lembrou, com um olhar baixo e distante.
Os policias dividiram as pessoas em grupos de oito pessoas, amarraram-nas pelos braços e pernas e as fizeram deitar, ela recordou. Cinco policiais corriam até elas e batiam com bastões.
Nicole foi levada para a cela sozinha. Ela desmaiou e acordou mais tarde sendo estuprada por um policial.
"Eu gritava e lutava, mas ele fez o que queria", contou, seus dedos trêmulos lutavam contra as lágrimas que rolavam pelo seu rosto. Ela lembra que outros policiais passavam ao lado, olhavam e iam embora.
"Ele só me estuprou uma vez porque desde então tenho tido secreções de sangue e urina", disse ela. Em meio a uma confusão, Nicole foi empurrada para fora da delegacia. Ela não viu mais seus filhos desde então.
Nicole está entre mais de 137.000 burundienses que fugiram para o país vizinho, Tanzânia, desde que o presidente Pierre Nkurunziza anunciou, há um ano, que iria concorrer pelo seu terceiro mandato. O anúncio ocasionou uma onda de protestos, repressão e violência por parte das milícias.
Dos todos os relatos angustiantes dos massacres, torturas e prisões contadas por aqueles que fugiram, um padrão preocupante de estupros e violência sexual está emergindo.
Sobreviventes, incluindo Nicole, descrevem o estupro tem sido usado como punição em pontos de verificação dentro do Burundi e nas fronteiras. Algumas das pessoas que relataram os casos a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), disseram que os estupradores alegavam que as vítimas estavam associadas a partidos políticos da oposição, e que eram julgadas por seu passado ou por seus lugares de origem.
Outra mulher, uma das nove que foram entrevistadas para esta história, em um dos pontos de verificação recebeu um ultimato - “Ser estuprada ou morrer” - ao lado de uma “pilha de corpos”, entretanto, acabaram levando apenas os seus pertences. Três destas pessoas relataram terem sofrido estupro coletivo após terem sido forçadas a assistir seus maridos ou pais – todos coronéis do exército – serem mortos.
As mulheres não são as únicas a sofrerem estupros. Davide* um jovem homem, com olhos e bochechas grandes, é um dos dois refugiados que concordaram em compartilhar sua história. O estudante disse ter sido escolhido por seus colegas de sala por ter se recusado a se juntar aos Imbonerakure.
Como Davide “sabia muitos segredos” sobre as noites que eles saíam para assassinar pessoas na província de Makamba, as ameaças se tornaram mais frequentes, mas ele ignorava. Pensava que era uma brincadeira e que eles eram seus amigos.
Um dia, eles o agarraram na rua e o levaram para uma casa grande onde diziam que mantinham outras pessoas presas. Enquanto estava algemado, três homens vieram e o estupraram enquanto outros assistiam.
“Eles diziam: Você não se juntará a nós, então não te perdoaremos” disse ele.
Três semanas depois, outros amigos do Imboneraukure souberam qual havia sido sua punição. Eles tiveram pena dele e arranjaram uma maneira para que ele escapasse.
Davide teme que as pessoas descubram o que ele passou, apesar de considerar que aqueles que os violaram são “menos que humanos”. Enquanto ele espera para se juntar a sua namorada, na Tanzânia, e que ela seja compreensiva. “Eu a amo, então eu posso contar tudo para ela”, disse ele, com um sorriso tímido.
Renate Frech, Oficial Sênior de Proteção do ACNUR, trabalha nos campos de refugiados da Tanzânia e disse que “possivelmente os casos reportados de violência sexual representem apenas um pequeno número da realidade”, particularmente para homens.
“Nós temos que quebrar o silêncio quanto aos homens sobreviventes de violência sexual”, disse Frech. “Considerando que nós dificilmente recebemos relatos, estamos preocupados que homens também possam ser alvos, principalmente quando são detidos” acrescentou ela, enfatizando a necessidade de maiores recursos para oferecer serviços a todos.
Sobreviventes na Tanzânia ainda estão lidando com as sérias consequências dos assédios. Algumas mulheres no campo de refugiados estão dando à luz a bebês que são frutos de estupros. Outras foram rejeitadas por seus maridos, que as acusam de infidelidade ou que têm medo de serem infectados pelo HIV.
Uma mãe que foi estuprada por dois homens relatou que eles cortaram a garganta de seu filho de cinco anos de idade, mas deixaram seu marido vivo. Agora ela está grávida e espera que o bebê que está crescendo dentro dela seja de seu marido.
O ACNUR e seus parceiros estão tentando oferecer aos recém-chegados vítimas de violência sexual atendimento médico, assistência psicológica e serviços jurídicos.
Os serviços são estendidos aqueles que sofreram os ataques posteriormente a sua fuga. Desde abril de 2015, o Comitê Internacional de Resgate nos campos da Tanzânia ofereceu serviços a 1.759 sobreviventes de violência sexual e de gênero.
Chegar aos sobreviventes ainda é um desafio, uma vez que o medo de ser estigmatizado impede que as pessoas relatem os casos. Com apenas 30% dos fundos necessários para atender as necessidades daqueles deslocados devido à crise do Burundi, o ACNUR e seus parceiros estão enfrentando dificuldades para atender todos com serviços vitais como comida, água e abrigo.
Programas a longo prazo como assistência psicológica especializada, educação e oficinas de treinamento, que são cruciais para a prevenção e para o tratamento da violência sexual, caíram no esquecimento.
“Para onde quer que você peça ajuda, existe o impacto da falta de fundos” disse Frech.
O ACNUR e seus parceiros estão distribuindo para mulheres lanternas solares, mas o campo ainda precisa de mais iluminação e banheiros mais perto das casas, para reduzir a caminhada das mulheres, especialmente à noite, e assim mantê-las em locais mais seguros. Para reduzir os ataques as mulheres e meninas, que caminham 15 km para pegar lenha, os trabalhadores humanitários estão ajudando a construir fogões, assim como proporcionar lenha e ferramentas para cortá-las.
Uma mulher de 19 anos de idade, cujo os estupradores chegaram em sua casa e mataram seus pais, está tentando reconstruir sua vida, como refugiada, na Tanzânia.
“É difícil se recuperar de suas memórias” disse ela. A jovem continua sendo perseguida pelo que aconteceu em sua casa. “Este lugar não te deixa esquecer”.
*Nomes trocados por questões de segurança