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Funcionária brasileira do ACNUR fala sobre experiência de três meses na Ucrânia

Comunicados à imprensa

Funcionária brasileira do ACNUR fala sobre experiência de três meses na Ucrânia

19 Agosto 2022
Silvia Sander (à direita) atuou na resposta humanitária em diferentes partes da Ucrânia com projetos sobre violência de gênero ©ACNUR/ Arquivo Pessoal

Silvia Sander trabalha na Agência da ONU para Refugiados há sete anos e atualmente coordena a Unidade de Proteção do escritório do ACNUR em São Paulo. Ela fez parte da equipe de emergência do ACNUR e acaba de retornar ao Brasil após três meses na Ucrânia, compartilhando conosco suas percepções e memórias dessa experiência.


Por que você se tornou uma trabalhadora humanitária?  

Comecei minha carreira em Minas Gerais, trabalhando com temas relacionados ao acesso a direitos humanos e à redução de desigualdades sociais, sempre com foco em populações mais afetadas por violações de direitos e violências. Nesse caminho, em 2011 me deparei com o trabalho com pessoas refugiadas que chegam ao Brasil fugindo de contextos de graves violências. Em Manaus iniciei meus trabalhos pelo ACNUR, apoiando, sob uma perspectiva global, o acesso a direitos por pessoas refugiadas e migrantes de diferentes nacionalidades que chegam aqui em busca de proteção e de um recomeço.

Quais são as semelhanças e as diferenças da operação do ACNUR na Ucrânia em relação à resposta emergencial no Brasil relacionada ao fluxo de pessoas venezuelanas?

Os contextos de emergência humanitária envolvendo grande volume de pessoas em deslocamento forçado trazem alguns desafios comuns, independente da região do mundo em que ocorrem. Parte desses desafios comuns diz respeito à importância de se apoiar quem é forçado a se deslocar em razão de conflitos, guerras e perseguições em suas necessidades mais imediatascomo abrigamento seguro, assistência médica, alimentação, acesso a itens de higiene básica, água, informação e documentação. No médio prazo, os desafios envolvem, em geral, a construção de uma estratégia de recomeço, o que toca em temas relacionados a trabalho e geração de renda, educação, moradia, etc.

As emergências na Ucrânia e na Venezuela se assemelham, portanto, nessas necessidades enfrentadas pela população que se desloca de maneira forçada. Contudo, a Ucrânia enfrenta desafios adicionais relacionados ao contexto de guerra e ao fato de que o conflito continua, o que implica riscos adicionais à segurança, e também ameaças impostas pelo clima em vista do inverno rigorosíssimo que se aproxima. O volume de pessoas afetadas dentro e fora do país em poucos meses, que já ultrapassa 17 milhões de pessoas, também significa que a escala da operação de resposta humanitária precisa ser substancialmente maior.

Desde o início da guerra na Ucrânia, as equipes do ACNUR seguem atuando incansavelmente graças às doações de pessoas como você. Torne-se doador do ACNUR agora mesmo e nos ajude a continuar salvando vidas.

Conte um pouco sobre a sua atuação na Ucrânia. Em quantas cidades ucranianas você esteve durante o período? Como era o seu dia a dia? O que você fazia?

Trabalhei na Ucrânia durante três meses, entre abril e julho, como parte do time de emergência mobilizado pelo ACNUR para apoiar já os primeiros momentos da nossa resposta humanitária. Poucos dias depois de ser chamada, já estava na Ucrânia para trabalhar como oficial de proteção em apoio à estratégia de proteção a mulheres e meninas, principalmente, em temas relacionados à violência de gênero.

Minha base era em Lviv, para onde foi transferido o escritório central do ACNUR antes localizado na capital Kyiv. Ao longo de minha atuação no país, trabalhei também em outras quatro cidades, incluindo Kyiv, Vinnytsia, Dnipro e Uzhhorod.

Minha rotina de trabalho incluía, no escritório do ACNUR, debater, desenvolver e implementar a estratégia de proteção humanitária em conjunto com colegas nacionais e internacionais, com outras agências da ONU, governo e sociedade civil. Fora do escritório, meu trabalho envolvia a visita a diferentes centros de abrigamento e de atendimento à população deslocada para mapear, em conversa com as pessoas acolhidas e com trabalhadores desses espaços, as necessidades e prioridades de apoio. Meu trabalho também envolveu ministrar capacitações a equipes das organizações parceiras e das redes locais das diversas partes do país.

No pouco tempo livre, aproveitava para conversar com minha família no Brasil e para trocar experiências e impressões com colegas de trabalho de todas as partes do mundo, incluindo da Ucrânia e do Brasil.

Siliva ministra capacitação sobre violência de gênero para parceiros do ACNUR, em Lviv. ©ACNUR/ Arquivo Pessoal

Quais são as maiores necessidades das pessoas a curto e a longo prazo? Por que a ajuda às pessoas deslocadas na Ucrânia precisa continuar?     

A curto prazo, as pessoas impactadas pelo conflito precisam de segurança física e proteção, um local seguro para dormir, alimentos, atenção médica e itens de primeira necessidade, como colchões, cobertores, utensílios de cozinha, dentre outros. Informação sobre direitos e serviços de apoio também são vitais nesse primeiro momento. A médio e a longo prazos, o apoio necessário se relaciona com a retomada da vida no campo do trabalho, da moradia e dos estudos. O apoio a pessoas refugiadas em cada uma dessas frentes basicamente salva vidas, e não se restringe aos primeiros momentos das crises humanitárias, mas também no médio e longo prazo. O apoio recebido por essas pessoas é justamente o que vai demarcar experiências positivas e exitosas de recomeço, ou cenários trágicos e prolongados de não integração, com impactos profundos, inclusive, na saúde física e mental.

Ao doar para o ACNUR, você fornece a esperança de um futuro melhor a milhões de famílias que deixaram tudo para trás. Doe agora mesmo.

A resposta humanitária na Ucrânia tem recebido grande apoio e solidariedade do setor privado e das pessoas. Conte sobre uma situação na qual ficou claro o impacto dessas doações na vida da população refugiada e deslocada. 

O apoio do ACNUR às pessoas deslocadas pela guerra passa por várias vertentes, incluindo assistência financeira para que possam ter autonomia para adquirir o que precisam; fornecimento de itens de higiene e outros de primeira necessidade a pessoas evacuadas e em centros de acolhida; apoio com itens para a infraestrutura de abrigos e espaços de acolhida; reparos de casas atingidas por bombardeios; atendimento jurídico, social, e apoio psicológico, dentre outros também necessários. Ao longo de minhas passagens em centros de atendimento e de acolhida, testemunhei incontáveis exemplos de pessoas que encontraram alguma segurança para respirar, dormir, descansar, a partir da assistência do ACNUR em suas diversas formas de proteção emergencial. Em um cenário de impactos profundos a partir da violência vivida, a importância do apoio recebido pelas pessoas por meio das psicólogas dos nossos projetos foi também um dos temas que mais aparecia nas falas de agradecimento. O impacto da garantia de abrigo seguro em momentos de desespero e desesperança, e a possibilidade de receber ajuda financeira para cobrir itens essenciais, também eram evidentes.

Doe agora mesmo e apoie os esforços humanitários do ACNUR em resposta à guerra na Ucrânia. Doe agora mesmo.

Como é trabalhar no atendimento emergencial a pessoas em deslocamento forçado?  

É difícil e, ao mesmo tempo, muito bonito. Ouvir atentamente e testemunhar violência extrema não é tarefa simples. Exige preparo, retaguarda, profundo cuidado e respeito com as pessoas que atendemos, e autocuidado para não normalizar violências a partir da repetição da escuta. Trabalhar com pessoas refugiadas tem a ver com aprender a fazer uma escuta que exige humanidade, empatia, e preparo para saber como melhor apoiá-las. É preciso conhecer bem as redes de apoio local, conhecer e advogar pelos direitos dessas pessoas, e ter energia e criatividade para encontrar novas oportunidades para apoiá-las em conjunto com os diversos setores da sociedade, mesmo em situações adversas como a de um conflito armado.

O trabalho é belíssimo. Testemunha-se não apenas a violência, mas também a resiliência, a força dessas pessoas que seguem adiante apesar do que viveram. E tudo isso em um caldeirão de diversidade riquíssimo, o que faz desse trabalho uma janela de aprendizado sobre o mundo em que vivemos e sobre as sociedades que construímos.

Qual é a sua percepção sobre o impacto da guerra para as crianças ucranianas? 

Certa vez cruzei com uma mãe de mãos dadas com um menininho que deveria ter cerca de cinco anos. A sirene de alerta aéreo indicativa de risco de bombardeio soou e, imediatamente, o menininho começou a fazer um som de “boom, boom, boom”, como se fosse uma brincadeira. Algo que ele já teria ouvido, ou seja, sirenes e bombas, ou algo que ele esperava.

Também conheci uma garota de 13 anos em um abrigo para mulheres e meninas. Ao final de uma roda de conversa que mediei, me aproximei dela para saber como ela vinha passando o tempo, já que estava fora da escola, em uma cidade nova e sem outras adolescentes por perto. Ela então me mostrou o celular e explicou que passava o dia procurando os colegas nas redes sociais, tentando entender onde estavam, se estavam vivos, e tentando refazer virtualmente a rede que tinha antes de ter que fugir.

O impacto subjetivo nessa geração de crianças que estão sujeitas a lidar com sirenes, bombardeios, perda de suas casas, suas escolas, seus amigos, seus brinquedos, e, em muitos casos, de seus pais, mães e entes queridos, é algo que não se pode medir. Parte desse impacto, entendo, é irreparável. Outra parte, esperamos, talvez vá ser digerida com o tempo, com apoio em saúde mental, no reestabelecimento de laços familiares e no desenvolvimento da criança, de maneira geral.

Mulheres e crianças representam a maioria da população que deixou a Ucrânia. Dê a eles a chance de reconstruírem suas vidas. Doe agora mesmo.

Quais são os maiores desafios de atuar em um contexto de guerra? 

A insegurança, a imprevisibilidade das dinâmicas do conflito – onde é seguro, onde não é, o desabastecimento em função da destruição de rotas de acesso e outros impedimentos logísticos. Além disso, eu diria que os impactos subjetivos nas pessoas, e, muitas vezes, a dificuldade de acessar fisicamente aquelas que mais precisam ou as mais afetadas.

Qual foi a parte mais gratificante do seu trabalho?  

Conviver com as pessoas deslocadas internas e com meus colegas ucranianos, além de outros de tantas partes do mundo, foi uma experiência muito valiosa. Há camadas de humanidade – para além daquelas de desumanidade – que, penso, emergem com mais frequência nesses contextos tão extremos. Ver pessoas que perderam tudo e que seguem ajudando a outras em situação semelhante, testemunhar gestos de coragem e solidariedade, aprender com a resiliência profunda das pessoas – que seguem adiante, apesar de -, assistir aos gestos tão sensíveis de mães e cuidadores protegendo suas crianças, assistir às crianças protegendo e cuidando de seus adultos… Cenas e histórias assim, de descoberta de humanidades, estarão para sempre guardadas no meu afeto. Acho que isso é o que faz com que tanta gente queira seguir atuando em contextos humanitários tão extremos.

Qual foi o dia mais emocionante de trabalho, que lhe trouxe mais reflexões? 

Foram vários os dias e as reflexões. Nesse contexto extremo, são enormes o volume de trabalho, de informações, de novidades, a pressão, as imagens, os contatos, as conversas, o cansaço. A sensação é de se viver anos em poucos meses, dada a intensidade. Em contextos extremos, muitas coisas afloram e aprende-se muito sobre si e sobre os outros, sobre ser verdadeiramente humano. O conjunto das imagens, das pessoas, das histórias, das lágrimas dos outros e minhas, das risadas, dos medos, das pequenas vitórias, tudo isso, sinto, é algo que vou ainda digerir com o tempo, e refletir sobre.

Conte uma história, pessoa ou situação que tenha te marcado.   

Algumas imagens e sons da guerra me marcaram muito. As sirenes; os check points nas estradas; os prédios históricos – igrejas, museus, monumentos – cobertos com tapumes e sacos de areia para proteger de bombardeios; as pessoas mutiladas se recuperando, com as pernas e braços enfaixados; a presença militar ostensiva; os toques de recolher; a criança respondendo ao som da sirene com a imitação da bomba; o senhor chorando ao me mostrar sua igreja preferida toda coberta; uma construção arruinada por bombardeio à beira do rio; a voz das pessoas embargada, emocionada, pelas lembranças; as primeiras vezes em que houve bombardeios nas cidades ou perto de onde eu estava… Tudo isso são retratos que me marcaram muito.

Painel de flores que homenageia, em Lviv, vítimas da guerra. ©ACNUR/Arquivo Pessoal

Me marcaram muito, também, minhas e meus colegas que foram deslocados pela guerra na Ucrânia ou mesmo por outras guerras, vários separados de seus familiares, alguns lidando com perdas irreparáveis de entes queridos, outros saídos de áreas hoje ocupadas pelo exército russo, onde deixaram tudo. Escutar sobre o impacto da guerra na vida dessas pessoas, meus colegas e amigos, e assisti-las trabalhando incansáveis para apoiar a outros, foi algo que me marcou profundamente.

Silvia Sander, à esquerda, participa de reunião em centro coletivo em Dnipro, ao leste da Ucrânia © ACNUR / Arquivo Pessoal

Qual é o maior ensinamento que você carrega consigo depois desse período na Ucrânia?

A violência e a guerra nunca hão de ser o melhor caminho, sob nenhuma perspectiva. O estrago que se faz é sempre irreparável, mesmo com todo o apoio que se possa dar. Portanto, a paz deve ser, de fato, um imperativo a ser buscado sempre, e é preciso disseminá-la mais e mais, através das gerações, dos países, da educação, da imprensa, da arte, do direito, das diferentes linguagens, e para os diversos setores das sociedades.

Em paralelo, apoiar as pessoas afetadas por violências e guerras e contribuir para o reestabelecimento da paz é uma obrigação não apenas jurídica, sob o direito internacional dos refugiados, direito internacional humanitário e direito internacional dos direitos humanos, mas também uma obrigação ética de todas e todos nós, em todas as esferas de nossa atuação em sociedade.

Qual é a Silvia enquanto profissional e pessoa que retorna para o Brasil após essa experiência?  

Penso que retorno com uma escuta mais sensível, mais atenta e empática às pessoas que fogem de guerras e conflitos, que, tristemente, são muitas, são milhões de pessoas ao redor do mundo. Ver de perto esse cenário me ajuda a ter mais elementos para entender o tamanho dos desafios que essas pessoas enfrentaram antes de chegar a um país como o Brasil, para recomeçar a partir de suas bagagens de conhecimentos. A experiência me dá, também, maior repertório técnico para contribuir com outras respostas humanitárias e a busca de soluções em favor de pessoas refugiadas no Brasil e em outras partes do mundo.

Por que é importante que pessoas e empresas apoiem o trabalho do ACNUR?   

O apoio ao ACNUR através de doações é o que garante que possamos estar na linha de frente de emergências humanitárias, ajudando a salvar as vidas de milhões de pessoas ao redor do mundo. O apoio ao ACNUR é o que leva as/os trabalhadoras/es humanitários a cenários extremos como o da Ucrânia, e também os insumos para apoiar abrigamento e outras necessidades imediatas das pessoas que acabam de ter que fugir deixando tudo para trás.

Doe agora e nos ajude a ficar prontos para responder à próxima emergência.

Bandeiras da Ucrânia dispostas em Kyiv, capital ucraniana, representando solidariedade global ao povo ucraniano. © ACNUR / Arquivo Pessoal