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Diários do Refúgio: Kaysar Dadour

Comunicados à imprensa

Diários do Refúgio: Kaysar Dadour

29 Novembro 2019
© Isabella Pinheiro/Gshow
Quando me perguntam se eu sinto falta da Síria, eu automaticamente sou transportado para lá. Sinto muita falta de Alepo. Sinto falta do cheiro da minha cidade, do cheiro da minha escola. Sinto falta do sorriso dos meus amigos. Sinto falta de cada pedaço do que eu tinha lá. Todos os sírios que passaram pela guerra vão te contar uma história diferente. Essa é a minha.

Alepo era uma cidade linda. Lá você encontrava tudo que quisesse. Ninguém dormia com fome, pois não faltava pão na mesa de ninguém.

Antes da guerra, eu era um escoteiro que viajava dentro do meu próprio país para explorar a natureza. Antes da guerra, eu era apenas um estudante bagunceiro com uma rotina comum, e que jogava futebol três vezes por semana com os amigos e disputava partidas de gamão. De repente, tudo mudou.

A guerra simplesmente chegou e eu não conseguia entender o porquê daquilo estar acontecendo na minha cidade, no meu país. Todo mundo achou que os conflitos eram algo temporário, que não iriam durar muito. Chegamos a pensar que em uma semana tudo estaria resolvido. Mas na verdade, não vemos sinal de paz mesmo depois de quase nove anos.

Confesso que depois de todo esse tempo, minhas memórias se confundem quando tento lembrar da Síria durante a guerra. Mas da dor e da tristeza eu nunca me esqueço. Não é fácil ver um irmão matando outro irmão, ver vizinhos brigando na rua. Pessoas próximas a mim foram vítimas de uma guerra que eu ainda não entendo.

Fico muito triste quando penso nas crianças que nasceram assim que a guerra começou e não conhecem a Síria como ela realmente é. Elas dormem e acordam ouvindo tiros. Elas vivem em um lar onde a preocupação de todos os dias é encontrar água, luz e comida. Que futuro elas vão ter? Não tem como ser feliz desse jeito, não tem como sorrir.

Para sobreviver, eu deixei a Síria e fui para a Ucrânia. Eu estava só e não conhecia ninguém. Ralei demais. Pensei em desistir, mas voltar para a Síria não era uma opção. Ou a guerra te mata, ou te deixa deprimido ou te faz buscar forças para superar tudo e seguir em frente. Eu segui o último caminho, mas nem todo mundo tem a mesma sorte. Sou muito grato a todas as dificuldades que passei porque foi depois de vencer cada uma delas que eu cheguei onde estou agora.

Nunca achei que o Brasil seria minha casa. Na minha cabeça, o Brasil era samba, futebol e praia. Quando cheguei em Curitiba, não vi ninguém sambando e ainda por cima fazia muito frio. Eu pensei ‘ué, será que estou no país certo?’. Pra completar, eu não falava nenhuma palavra em português. Ainda bem que eu pude contar com a ajuda do povo brasileiro, que acolhe, que é caloroso, feliz, animado. O Brasil tem uma alegria que só existe aqui. Esse país acolheu muita gente e me deu algo que eu não tinha mais na Síria: oportunidade de seguir com a minha vida.

Participar de um reality show foi uma experiência inesquecível e que abriu muitas portas para a nova vida que comecei a construir aqui no Brasil. Mas essa nova vida só ficou completa quando minha família finalmente voltou a fazer parte dela. A gente não se via desde 2011. Há sete anos eu não abraçava minha mãe.

Ter minha família por perto me deu forças para redescobrir coisas sobre mim que eu pensei terem desaparecido. Cheguei a sonhar em ser ator quando era pequeno. Depois de um tempo, a vontade sumiu.

Na verdade, o sonho não tinha sumido. Ele só estava esperando a oportunidade certa pra surgir de novo, e mais forte do que nunca. Lembro que no dia do teste de elenco da novela meus voos atrasaram. Cheguei ao Rio quase 5h horas depois do horário previsto. Pisei no estúdio 30 minutos antes dos testes terminarem. Eu não sei você, mas eu acredito que o destino dá um jeito de fazer a gente encontrar aquilo que está reservado pra nós. É com essa confiança que penso sobre o futuro.

Meu coração está pra sempre dividido ao meio, metade é da Síria e metade é do Brasil. A Síria é o lugar de onde eu vim. O Brasil é o lugar onde tive a oportunidade de retomar a vida que fui obrigado a deixar para trás. Todos os dias eu luto pra ser feliz. Não desisto, não desanimo. Eu continuo firme, porque depois de tudo que passei, sei que o melhor dia do mundo é o hoje.

 

Diários do Refúgio é um espaço onde refugiados de diferentes nacionalidades e idades irão compartilhar em primeira pessoa relatos de suas trajetórias em busca de segurança. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) trabalha em 134 países para salvar as vidas, proteger os direitos e garantir um futuro digno às pessoas que foram forçadas a se deslocar em virtude de conflitos, perseguições e graves violações de direitos humanos, assegurando que possam buscar e obter refúgio em outro país. Sua doação transforma a vida de quem foi forçado a deixar tudo pra trás. Ajude refugiados hoje mesmo.