Entrevista: Novos desafios do ACNUR na Líbia
Entrevista: Novos desafios do ACNUR na Líbia
TRIPOLI, Líbia,17 de março de 2012 (ACNUR) – Pouco mais de um ano após o início do levante que derrubou o ditador líbio Muammar Gaddafi em agosto do ano passado, problemas de deslocamento persistem no país ao norte da África. Ao mesmo tempo, o fluxo de pessoas da África subsaariana que chegam na Líbia em rotas migratórias mistas para a Europa cresce novamente. Alguns são refugiados e solicitantes de refúgio de países como Somália, Eritréia e Sudão.
Emmanuel Gignac chegou em Tripoli setembro passado para chefiar o escritório do ACNUR, retomar as operações da agência da ONU para refugiados e consolidar a presença da organização na cidade de Benghazi, no leste da Líbia.
O ACNUR aguarda o estabelecimento de um acordo formal com as novas autoridades do país. Porém, existem muitos desafios a serem enfrentados, incluindo a ajuda aos refugiados, retornados, os deslocados internos e pessoas com risco de se tornarem apátridas.
Gignac falou sobre estas questões com o editor do site do ACNUR, Leo Dobbs, em Tripoli. A seguir, trechos da entrevista:
Qual tem sido o maior foco do trabalho do ACNUR na Líbia?
Estivemos bastante ocupados com os deslocados internos e nacionais de outros países que estão retidos no país. Isso nos manteve preocupados até dezembro passado. Quanto aos refugiados, temos progressivamente retomado nossas atividades. Estivemos também ocupados com os somalis (que chegam à Líbia em rotas migratórias alternativas), que ainda não foram reconhecidos como refugiados, pois não retomamos ainda as atividades de determinação do status de refugiado. E também não retomamos a emissão de registros e documentações, pois estamos aguardando nosso acordo com as autoridades. Gostaríamos de trabalhar diretamente com as novas autoridades líbias (Ministério de Relações Exteriores, Ministério do Interior) e ver como podemos assistir na busca de soluções para refugiados. Estamos também conduzindo, por meio das universidades e sociedade civil, sessões de sensibilização sobre direitos dos refugiados e o ACNUR. Esta é uma área importante.
Conte-nos mais sobre os deslocamentos internos
As estimativas que temos para deslocamento interno estão constantemente decrescendo. Chegamos a mais de 400 mil pessoas em agosto e setembro, e agora estamos numa estimativa de 93 mil. Ao leste do país, tem um grande número de pessoas deslocadas em Benghazi, incluindo muitas pessoas de Tawergha, uma cidade localizada a oeste de onde as forças pró-Gaddafi lançaram ataques durante o cerco à cidade vizinha de Misrata.
Possuimos nove campos em Benghazi e ficamos lá diariamente, nós mesmos ou parceiros.Temos 14 campos aqui em Tripoli e quatro em Tarhuna. A maioria nos campos vem de Tawergha, mas possuímos outras minorias deslocadas, incluindo os gwelish e os mashushyas. Basicamente, pessoas que fazem parte de certos grupos que continuaram deslocados, são vistas como leais à Gaddafi e, por isso, não se sentem seguras para retornar para casa. É uma situação que requer reconciliação, e isso não ocorrerá de maneira rápida.
No sul temos alguns bolsões de pessoas deslocadas, mas muito menos que em outras regiões.Porém existe um problema relacionado aos povos Tabu e Tuareg, para os quais existem grandes possibilidades de que um significativo número de pessoas se torne apátridas ou potenciais apátridas. Este não é, em si, um tema de deslocamento, mas pode se tornar caso os líbios decidam que alguns Tabu ou Tuareg que se estabeleceram na Líbia há 40 anos deverão ser mandados de volta a Mali ou Níger.Tratamos do termo apátrida, pois as crianças que nasceram no sul da Líbia durante estes anos não possuem certidão de nascimento, nem líbio, nem maliano.
E os refugiados?
Atualmente, possuímos registrados em nosso bancos de dados 9.400 refugiados e requerentes de asilo, (estas pessoas foram registradas antes do levante do ano passado). Cerca de 6.600 são refugiados, e os demais 2.700 são requerentes de asilo. A maior parte ainda está aqui, a maioria em Tripoli. Alguns estão em Misrata, outros em Benghazi. De um total inicial de 10.600 pessoas registradas, aproximadamente 1.200 deixaram a Líbia em meio ao levante e foram registradas no campo de Choucha, na Tunísia ou Sallum, no Egito.
O maior grupo de refugiados registrados é formado por iraquianos, seguidos dos palestinos. Depois veem os eritréios, sudaneses e somalis. Acredito que a maior parte dos iraquianos veio durante o governo de Saddam Hussein. Estamos falando de 3.100 refugiados e requerentes de asilo. Os palestinos são, oficialmente, o segundo maior grupo, com 2.700 pessoas. Mas relatórios apontam que podem ter mais de 40.000.
Paramos de fazer novos registros em junho de 2010. Uma crise eclodiu quando o governo, na época, exigiu a saída do ACNUR do país. Uma missão de alto-nível veio de Genebra e negociou um novo acordo que significou que nós não iríamos mais registrar, mas apenas cuidar do grupo de pessoas que já tínhamos. Ainda não temos um acordo com as autoridades.
Mais sírios têm chegado?
Antes, havia um grande número de sírios no país por trabalho. Penso que havia 90.000 deles. A grande maioria deixou o país durante o levante. Deve haver mais de 2.000 pessoas registradas por organizações sírias aqui e em Benghazi. Então, não é um número gigante. Mas as indicações de dados de travessia de fronteira de fevereiro a dezembro de 2011 na fronteira egípcia de Sallum indicam que pode haver 10.000 sírios na Líbia atualmente.
Ó tráfego de migração pela Líbia está crescendo novamente?
Está, com certeza. No sul, todo a questão de migrações mistas (pela Líbia e através do Mediterrâneo) para a Europa está crescendo. As duas principais áreas de captação de pessoas da África sub-saariana são Sabha e Kufra. Sabha localiza-se na parte ocidental do cinturão sul e Kufra ao leste.
Sempre tivemos pessoas partindo daqui. Durante a crise, nós tivemos uma situação precária em Sidi Bilal, um pequeno porto de pesca (próximo a Trípoli) no qual um grupo de cerca de 900 (migrantes da África sub-saariana) estava vivendo em barcos. Algumas dessas pessoas já estavam na Líbia antes do conflito, mas muitas delas chegaram recentemente.Vimos também um fio constante de somalis chegando de Sabha – e agora mais de Kufra – partindo para Benghazi e depois viajando para Tripoli.
Então, os movimentos já existiam, mas é claro que o número está aumentando. Em janeiro, tivemos barcos que partiram. Dois chegaram (um para a ilha de Lampedusa, na Itália e o outro para Malta), enquanto quatro foram trazidos de volta pela guarda costeira líbia. Infelizmente, um barco virou e acreditamos que todo o grupo se afogou. Quinze corpos foram recuperados de um barco que deve ter carregado cerca de 50 pessoas. Acredito que, por conta da pouca capacidade de controlar as fronteiras ao sul, ainda veremos o fenômeno aumentar.
Conhecemos cerca de 600 migrantes, requerentes de asilo que estão sendo mantidos presos no centro de detenção em Kufra. Estamos buscando maneiras de ajudar a evacuá-los para Benghazi (por conta da luta na região entre os tabus e uma tripo árabe).
A maioria vem da África sub-saariana?
Sim. Vemos muitas pessoas da Nigéria, muitas pessoas de Níger, Senegal, Costa do Marfim, também África Central, alguns do Congo, e temos também os eritréios e sudaneses. Temos sudaneses do Darfur, e outros lugares. E os somalis, claro.
Mas também tivemos pessoas de Bangladesh utilizando de rotas migratórias mistas. Um número grande deles, aparentemente, vieram primeiro em voos para o Sudão.Tivemos um grupo de mais de 200 em Benghazi e um outro grupo que apareceu recentemente em Kufra. Eles vêm em busca de empregos e estão dispostos a passar por qualquer tipo de dificuldade. Eles querem ficar aqui.
Nós temos defendido com as autoridades, uma política geral para todos os estrangeiros, para dá-los proteção temporária ou documentos que possibilitem sua estada aqui e trabalhar, seja por três, seis ou nove meses. Seria bom ter tempo para desenvolver um quadro de migrações apropriado, uma política e possuir disposições específicas para os requerentes de asilo. Não se quer fazer isso com pressa. O que se deve fazer rápido é encontrar modos de lidar com questões de migrantes irregulares, incluindo os requerentes de asilo, sendo detidos.
Conte-nos mais sobre os migrantes que estão sendo presos
Estamos muito preocupados durante os eventos de setembro, outubro (quando algumas pessoas da África sub-saariana foram acusadas de serem pró-Gaddafi, pois o ditador líbio havia usado mercenários de outras partes do continente). O quadro era bastante delicado.
É claro que isso se estendeu de tal maneira que, qualquer pessoa que parecesse proveniente da África sub-saariana, corria risco de ser presa, especialmente se não tivessem nenhuma documentação. Mas a maior parte delas era dos fluxos migratórios mistos, ou seja, pessoas em situações irregulares sem documentação apropriada. A maioria dessas pessoas foi presa. Tínhamos somalis chegando no período, os acomodamos e eles ainda estão lá até agora.
Nós estamos fortemente aconselhando-os (as autoridades de transito) a não devolver os somalis, por exemplo, e eles realmente entendem isso. Espero que possamos começar um sistema temporário no qual teremos, ao menos, alguns centros de processamento para os quais as pessoas podem ser levadas.
Tendo em conta que eles precisam de trabalhadores estrangeiros, estamos tentando dizê-los que para estas pessoas que estão dispostas a ficar aqui e trabalhar, seja dada uma permissão temporária para ficar. No ponto em que estamos não pedimos nem que concedam papéis diferentes aos requerentes de asilo. . . Sendo eles migrantes econômicos ou potenciais refugiados, vamos ter um único documento que os permita trabalhar, ficar temporariamente e legalmente, contando com uma proteção básica.
A operação do ACNUR cresceu. Nos conte mais sobre isso.
A equipe internacional em nosso escritório em Tripoli foi evacuada no final de fevereiro do ano passado e toda a equipe nacional teve que ficar em casa, mas alguns funcionários corajosos vieram, voluntariamente, para garantir que mantivéssemos contato com os refugiados, mantendo a relação com nosso parceiro, Al Wafa para ajudar os refugiados. O escritório começou a aumentar em setembro. Antes, contava com três funcionários internacionais. Agora, temos 11 funcionários internacionais e um pouco mais de 20 nacionais em Tripoli. Em Benghazi, temos cinco funcionários internacionais e sete ou oito nacionais.