“Falar da minha vida na Síria dói o coração, mas temos que levar nossa voz para todo mundo”
“Falar da minha vida na Síria dói o coração, mas temos que levar nossa voz para todo mundo”
Quando a arquiteta Lucia Loxca pensa em Alepo, os prédios históricos da cidade invadem suas lembranças com carinho e nostalgia. “São prédios que falam com você, eles guardam histórias diferentes. Você sente que está em uma vida normal, em uma zona de conforto. De repente, de um dia para o outro, você acorda com sons de bombas”.
Hoje, essa paisagem é apenas uma lembrança, e as construções de que tanto sente falta foram destruídas pelo conflito que assola a Síria há dez anos. “Eu estudava arquitetura lá na Síria, mas a faculdade foi bombardeada. Perdi amigos, perdi a faculdade, não consegui continuar meu curso”, lembra.
Lucia e sua família decidiram vir para o Brasil após viverem por dois anos a dura realidade imposta pelo conflito. “A gente sofreu com a ausência de coisas básicas para sobreviver: uma garrafa de água, um saco de arroz”. Apesar da insegurança e recursos escassos, eles tentavam permanecer no país, mas a vida na Síria se tornava cada vez mais insustentável. Quando o som das bombas começou a se aproximar, Lucia sabia que precisava ir embora.
Entre o final de 2013 e começo de 2014, Lucia, seu marido e outras 16 pessoas de sua família vieram para o Brasil. A escolha foi difícil, sobretudo pela vontade do grupo de permanecer unido. “Quando a gente fala em fugir, a gente não está dizendo isso individualmente. A gente pensa na família inteira. Então levamos os avós, os filhos, os netos... Imagina, avós que têm 80 anos tirando suas raízes da Síria e as colocando no Brasil. É bem difícil e complicado, mas a gente tinha que seguir em frente”, afirma.
“A gente sofreu com a ausência de coisas básicas para sobreviver ”
Assim como outros 6,6 milhões de refugiados sírios, Lucia teve seus planos de vida interrompidos pelo conflito. Após encontrar segurança no Brasil, recomeçar de onde parou parecia o plano mais concreto, mas a barreira linguística e o choque cultural foram grandes desafios durante seus primeiros anos no país, e quase a afastaram do sonho de continuar sua graduação.
Quando as coisas pareciam perdidas, Lucia teve a ajuda de um professor, Paulo Chiesa. Em 2014, ela conseguiu reingressar no curso de graduação. “Eu não tinha documentos, nem nada e o coordenador correu atrás disso, viu como podia me ajudar e conseguiu saber que tem possibilidade na lei federal de vagas específicas para refugiados. Foi assim que começou minha vida no Brasil”, relembra.
Três anos depois, Lucia não só conquistou seu diploma, mas fez história como a segunda refugiada em solo brasileiro a finalizar a graduação no país.
Durante esses primeiros anos aprendendo português, fazendo amigos e conhecendo o país, a cultura teve um papel essencial na integração de Lucia no Brasil. Tudo começou pelo paladar, quando ela e sua família começaram a vender comidas típicas da Síria em feiras e eventos culturais.
Depois, veio a música. Se os prédios históricos de Alepo ocupam o horizonte de suas memórias, os acordes do alaúde e das 80 cordas do kanun são os sons que a transportam para um período antes do conflito. Foi assim que nasceu o Trio Alma Síria, banda formada por Lucia, seu marido e cunhada. Juntos, eles performam músicas típicas e populares do país árabe. “A nossa cidade na Síria, Alepo, é um ícone de música e comida. A gente queria mostrar nossa cultura para o povo brasileiro, se aproximar mais, se integrar, e achamos essa maneira”, diz com orgulho.
Antes da pandemia, Lucia e seu marido costumavam abrir as portas de sua casa para a realização de eventos culturais, com comidas típicas e apresentações musicais de sua banda. Foi um jeito que o casal encontrou de contar sua história e manter viva suas memórias. “Falar da vida, das minhas histórias antes da guerra dói o coração, mas temos que levar nossa voz para todo mundo”, diz.
Hoje, oito anos desde a primeira vez que pisou em Curitiba, as raízes de Lucia já estão fincadas em solo brasileiro. Seus filhos, Julia, de dois anos, e Pedro, de quatro anos, são a continuação de sua história no país. “Os meus filhos vão ter vida, vão ter mais opções, mais oportunidades do que a gente teria”, afirma. Assim como transmitir sua cultura para o povo brasileiro é importante, ensinar árabe para seus filhos e repassar suas tradições é uma de suas grandes missões. E uma forma de garantir que os elementos de sua vida na Síria sejam mais do que apenas memórias, mas façam parte de seu dia a dia.