“Não sabia o que significava ser um apátrida”
“Não sabia o que significava ser um apátrida”
BRASÍLIA/ BUENOS AIRES, 10 de novembro (ACNUR) - “Não sabia o que significava ser um apátrida. Só fui entender quando comecei a fazer os trâmites para renovar o passaporte há seis meses. Não conhecia meus direitos, nem a quem poderia recorrer”, disse Miguel Kreiter, um apátrida que vive na Argentina.
Qual é o ponto central na definição de apátrida? O termo “apátrida” pode se referir tanto a uma criança quanto a um homem ou uma mulher que por alguma razão prática não possuem nenhuma nacionalidade, mesmo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconheça seus direitos a ter pelo menos uma.
Não são poucas as pessoas que, de fato, perderam sua nacionalidade pelos mais variados motivos. Foi o que aconteceu com Miguel, que nasceu em um campo de refugiados em território austríaco em 1945. Seus pais eram nacionais da antiga União Soviética, onde ele permaneceu até o final da Segunda Guerra Mundial, quando emigrou para a Argentina em 1949. Ali viveu por vários anos, obteve residência legal e uma certidão de identidade para estrangeiros. Depois de muitos anos, quando quis obter um documento de viagem para visitar seus filhos e netos que vivem no Canadá, ele percebeu que a Federação Russa e a Áustria não o reconheciam como nacional. Dessa forma Miguel não podia conseguir nem um passaporte argentino nem um austríaco ou russo.
A invisibilidade desse problema nas Américas faz com que a situação seja paradoxalmente reveladora. No ano de 2009, o ACNUR contava com estatísticas que contabilizavam 118 apátridas registrados em todo o continente. O número, aparentemente insignificante, não revela a diversidade de situações que, talvez diariamente, produzem situações de apatrídia ou que impedem responder a ela.
Esse fenômeno é um dos pontos de discussão do Encontro Internacional sobre Proteção de Refugiados, Apátridas e Movimentos Migratórios Mistos nas Américas, que irá ocorrer nesta quinta-feira (11 de novembro), em Brasília (Brasil). Promovido pelo ACNUR e pelo Governo do Brasil, o encontro reunirá 20 países da região.
“Eu era ninguém e sentia que não podia fazer nada”, afirma Miguel. “Tinha que ter viajado há vários meses para ver meus netos e não consegui. Minha irmã terá o mesmo problema quando quiser viajar porque está na mesma situação”, concluiu.
Ainda que a Argentina seja parte da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, até o momento não conta com um organismo e um procedimento para determinar a condição de apátrida. Portanto, mesmo que conte com uma lei de nacionalidade ampla, assim como com legislações migratórias e documentos que contemplem a situação dos apátridas, é necessário que um organismo do governo leve adiante o processo de determinação do estatuto.
Como Miguel tinha sido reconhecido como refugiado pela Organização Internacional para Refugiados, a Comissão de Refugiados da Argentina reconheceu, também, sua condição de refugiado apátrida, o que permitirá que ele tenha acesso a um documento de viagem. Mesmo assim, ele já iniciou os trâmites para obter a nacionalidade argentina.
Como Miguel, muitas outras pessoas enfrentam essa realidade no continente americano. De fato, é comum o nascimento de crianças, em regiões fronteiriças, que não são registradas após o nascimento, que não contam com documentos de identidade e dificilmente poderão obtê-los. Também é problemática a situação das crianças que não têm a nacionalidade do seu país de nascimento e nem a dos seus pais.
Existem tratados internacionais para prevenir e responder a esses fenômenos. Lamentavelmente, muitos países da região ainda não são signatários deles. Tampouco contam com legislações ou mecanismos que permitam que lidem de maneira efetiva com o problema. Por outro lado, muitos países não estão em condições de identificar, documentar ou garantir os direitos fundamentais dos apátridas. Além disso, as legislações sobre nacionalidade que apresentam lacunas podem gerar novas situações de apatrídia.
Por isso é importante que os Estados redobrem seus esforços para prevenir e responder à apatrídia de forma que, tal como ocorreu com os sistemas de proteção de refugiados nos últimos anos, as ações e respostas sejam multiplicadas. “Se uma pessoa nasceu em um país e tem os documentos que confirmam esse fato, é uma grande injustiça que não seja reconhecido como um nacional”.
Francesca Fontanini, em Brasília, e Juan Ignacio Mondelli, em Buenos Aires