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“O impacto da crise na Síria é, francamente, incompreensível”

Comunicados à imprensa

“O impacto da crise na Síria é, francamente, incompreensível”

11 Março 2019

Yara Maasri, 34, trabalha há mais de 4 anos no ACNUR e já atuou em quatro países. Hoje, ela é oficial regional de avaliação de vulnerabilidade e targeting no escritório do ACNUR na Jordânia. Na semana que marca os 8 anos da guerra na Síria, ela compartilhou conosco os principais desafios dessa grave crise.


 

Por que você se tornou uma trabalhadora humanitária?

Desde pequena, eu sempre gostei de defender direitos humanos. Apesar de ter escolhido estudar um dos meus outros interesses (idiomas e leitura) na universidade, me formando em Literatura Inglesa e Linguística, quando fiz meu mestrado decidi mudar para a área de migração. Eu mesma passei minha vida me mudando, e até hoje vivi em dez países, quatro deles antes de ter 15 anos. Eu também tenho origens mistas - minha mãe é brasileira e meu pai é libanês, e isso teve um impacto muito grande na minha vida, fazendo com que eu me interessasse por conceitos como identidade, cultura e pertencimento. Por isso, o trabalho humanitário com refugiados e migrantes me pareceu um passo natural. 

Com o que você trabalha hoje?

Há dois anos trabalho com avaliações e pesquisas de vulnerabilidade e targeting, no escritório do ACNUR para o Oriente Médio e África do Norte, em Amã, na Jordânia. Fazemos estudos das populações de refugiados em diferentes países, para entender suas necessidades e identificar quem precisa de assistência do ACNUR. Fazemos isso através de pesquisas (economia, proteção, educação, abrigo, água e saneamento, etc.), usando técnicas avançadas como estatística mas também dependendo do conhecimento dos nossos especialistas de campo e dos próprios refugiados.

Qual é a parte mais gratificante do seu trabalho?

Interagir com colegas de formação educacional e profissional diferentes da minha, enquanto trabalhamos juntos para atingir uma meta comum. Eu aprendi muito sobre estatística, por exemplo, e como podemos a utilizar para nos ajudar a fazer nosso trabalho melhor, enquanto observamos nosso mandado como uma agência de proteção.

Qual é a parte mais desafiadora do seu trabalho?

A parte mais desafiadora é saber que, apesar de sermos uma das operações mais bem financiadas do ACNUR, ainda assim existem centenas de milhares de pessoas que precisam da nossa ajuda, mas a quem não podemos a providenciar, devido à falta de fundos. E isso significa que tem pessoas que vão dormir preocupadas com pagar o aluguel, mandar seus filhos para a escola, comprar comida e remédios… pensar nisso é muito difícil.

Você pode nos contar um pouco sobre o imenso impacto que a crise na Síria tem na vida de milhões de pessoas e como você presencia isso diariamente?

O impacto da crise na Síria é, francamente, incompreensível. Acho muito difícil realmente compreender a magnitude do que aconteceu ao país e seu povo. Parece estar muito longe da minha realidade, mas sempre penso também que deveria parecer longe da realidade dos sírios quando tudo começou. Quem poderia imaginar quantas pessoas seriam forçadas a deixar suas casas, seus empregos, suas terras e suas famílias; e que quando fossem embora, passariam tanto tempo exiladas. Parte do meu trabalho é contribuir para pesquisas com refugiados sírios, e percebo que com o passar do tempo, no geral, tanto suas condições financeiras como seu bem-estar tem piorado. A quantidade de gente precisando de ajuda é surpreendente, praticamente inconcebível. As necessidades mais básicas, que muitos de nós nem imaginamos viver sem, como eletricidade, saneamento, cobertores, tornam-se uma enorme preocupação para centenas de milhares de pessoas. E é importante também lembrar das nações vizinhas que têm permitido muito benevolentemente que milhões de sírios cruzem suas fronteiras e permaneçam no país, por vários anos já. Esses países, como a Jordânia e o Líbano, também foram afetados e continuam a depender da comunidade internacional para que consigam manter sua hospitalidade.

Qual o apoio fundamental oferecido pelo ACNUR nessa emergência?

O ACNUR lidera um esforço coordenado pela região para providenciar assistência que salva vidas, ajudando os mais vulneráveis com dinheiro para comida e remédios, fogões e combustível para aquecimento, isolamento para tendas, cobertores termais e roupas de inverno. Também empregam soluções duradouras como reassentamento, embora para uma minoria da população. Para aqueles que foram deslocados mas continuam na Síria, também providenciamos kits de abrigo e apoio psicossocial. Todas nossas intervenções têm como objetivo principal proteger os refugiados e deslocados.

Qual foi o seu melhor dia de trabalho?

Acho que meu melhor dia de trabalho aconteceu há apenas alguns meses. Estava com colegas em uma roda de discussão em Manaus, onde fui em missão para apoiar a operação com a resposta à situação da Venezuela, e havia um pouco de tensão enquanto os participantes respondiam uma pergunta sobre encontrar emprego no Brasil. Uma das pessoas que havia chegado mais recentemente respondeu que era “impossível”, enquanto um outro, que já estava em Manaus há alguns anos, disse que, apesar de ser difícil, era possível, desde que a pessoa fizesse um esforço. Esse homem foi a pé de Boa Vista até Manaus, um trajeto de mais de 700km; depois de ter passado mais de um mês vivendo em situação de rua em Boa Vista. Apesar de ter passado momentos muitos difíceis e de nem sempre conseguir pagar todas suas contas, ele disse ser imensamente grato pelas oportunidades que o governo brasileiro o deu, assim como toda a assistência do ACNUR. Como uma brasileira que trabalha para o ACNUR, me senti muito feliz de ouvir que nossos esforços conjuntos haviam tido um impacto tão positivo na vida deste homem.

Qual foi o seu pior dia?

Meu pior dia foi há alguns anos, quando, devido a uma escassez de financiamento, eu e alguns colegas tivemos que encontrar uma maneira de identificar os casos mais vulneráveis de refugiados sírios para continuar recebendo assistência financeira. O que tornou a tarefa ainda mais dolorosa é que todas as pessoas que recebem assistência já são as mais vulneráveis, então escolher dentre elas quem era ainda mais vulnerável nos deixou muito triste. No final, não tivemos que cortar a assistência de ninguém – daquela vez – porque recebemos fundos em cima da hora, mas eu nunca vou esquecer aquele dia. Saber que algumas pessoas que precisavam muito da assistência iam parar de recebê-la simplesmente porque não tínhamos dinheiro suficiente…me deu uma sensação de impotência.

Tem alguma história que tenha te marcado?

Uma vez, estava numa roda de discussão na Jordânia e um dos doadores que estávamos recebendo elogiou uma das participantes, uma mulher síria, dizendo que suas filhas eram muito bem-educadas e bem-vestidas. Ela perguntou, onde você encontra roupas tão bonitinhas pra elas? A mulher respondeu que ia de vez em quando a uma organização de caridade que distribuía roupas usadas, e tentava escolher as melhores peças, o que não era sempre fácil; ela explicou que várias das roupas doadas estavam em condições tão ruins que ela não poderia usá-las nem pra limpar o chão da sua casa. Só porque somos refugiados, ela disse, não quer dizer que não temos orgulho e dignidade. Este foi um momento marcante pra mim, que desafiou a própria noção de assistência. A mulher não soou nem um pouco arrogante ou mal­-agradecida; ela estava apenas dizendo uma verdade que muitas vezes esquecemos. Refugiados têm sim necessidades urgentes, várias das quais podem ser atendidas com assistência material, mas isso não quer dizer que não devemos pensar neles e os tratar com o maior respeito, o mesmo respeito que devemos a nossas famílias e amigos – a quem eu duvido muito que daríamos roupas rasgadas ou manchadas como presentes. Essa é uma das principais razões que o ACNUR defende o aumento de assistência financeira (em contextos que permitem), que é a maneira mais digna de providenciar assistência, já que proporciona o poder de escolha às próprias famílias, que sem dúvida sabem elas mesmo melhor definir suas prioridades.