“Sei que o dia valeu a pena quando sinto que consegui ajudar alguém de alguma forma”
“Sei que o dia valeu a pena quando sinto que consegui ajudar alguém de alguma forma”
Lyvia Barbosa é Assistente Sênior de Registro da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em Boa Vista, Roraima. Apesar de já ter sonhado em seguir carreira na Medicina, foi no trabalho humanitário que ela encontrou a vocação para salvar vidas.
Por que você se tornou uma trabalhadora humanitária?
Sempre senti vontade de trabalhar com algo que fizesse a diferença na vida das pessoas. Na adolescência, pensei em fazer Medicina, pois queria salvar vidas. Infelizmente, meu pavor de sangue não permitiu que eu me tornasse médica.
Na universidade, passei a me interessar pelo deslocamento forçado, situação em que as pessoas não têm a chance de escolha. Elas simplesmente são obrigadas a sair de suas casas por uma série de fatores.
Foi assim que acabei encontrando outra maneira de salvar vidas, ou ao menos trabalhar para aliviar um pouco a dor e a angústia de quem foi obrigado a deixar tudo para trás para viver em outro lugar.
Há quanto tempo você trabalha no ACNUR? Pode nos contar um pouco sobre a sua atuação? Como é o seu dia a dia?
Estou trabalhando em Roraima há um ano e meio. Comecei atuando em Pacaraima, cidade que fica na fronteira com a Venezuela. O dia a dia lá é bastante intenso, pois trabalhamos com as pessoas que estão chegando ao Brasil. Tudo ainda é muito novo para os refugiados e migrantes venezuelanos, eles têm muitas dúvidas e apreensões. Muitas vezes chegam exaustos dos dias que passam viajando, seja de ônibus, carro ou até mesmo a pé.
Graças ao trabalho de registro feito pelo ACNUR, conseguimos averiguar a quantidade de pessoas presentes em um lugar, bem como definir qual é o perfil dessa população. Com esses dados em mãos, identificamos necessidades especiais e conseguimos planejar soluções de longo prazo que as permitam recomeçar suas vidas de forma digna e segura.
Você pode nos contar um pouco sobre o impacto que a crise na Venezuela tem na vida de milhões de pessoas e como você presencia isso diariamente?
A crise na Venezuela impacta todos os aspectos da vida de quem morava no país. Ela não faz distinção de cor ou classe social. As pessoas estão fugindo de um país que não consegue mais garantir seus direitos básicos.
O primeiro impacto visível que percebemos é a mudança física das pessoas. Como sempre trabalhei com registro, diariamente via a foto das pessoas em seus documentos de identidade. A diferença física era muito nítida: elas geralmente estão muito mais magras hoje em dia e o envelhecimento precoce também é visível. Vemos em seus rostos um olhar preocupado e exausto.
O que eu mais ouvia das pessoas nas entrevistas era que elas não queriam ter saído da Venezuela, mas foram forçadas a deixar o país porque não era possível viver lá. As pessoas estão fugindo para tentar garantir seus direitos básicos à alimentação, à saúde, à educação. Elas estão em busca de sobrevivência e de uma vida mais digna.
Qual o apoio fundamental oferecido pelo ACNUR nessa emergência, e em especial na fronteira?
O papel fundamental do ACNUR nesta emergência é criar condições para que os refugiados e migrantes venezuelanos consigam recomeçar suas vidas. A Agência auxilia no processo de documentação e garante que as pessoas mais vulneráveis sejam acolhidas.
Na fronteira, a tarefa é semelhante, mas tem suas especificidades, como garantir o acesso dos venezuelanos ao Brasil, orientá-los sobre seus direitos e garantir um lugar seguro para dormirem enquanto aguardam a documentação.
Você se recorda de algum episódio específico, pessoa ou situação que tenha te marcado?
Os episódios marcantes são muitos. Todos os dias somos sensibilizados por alguma situação, mas tem uma que guardo com muito carinho. Durante uma ação para abrigar cerca de 200 pessoas em Pacaraima, uma criança de cerca de 7 anos nos abordou pedindo um abraço. Assim que ajoelhei para abraçá-lo, ele agarrou o meu pescoço e sussurrou “muito obrigado por tudo que fizeram por mim e pela minha família aqui, somos muito gratos”. Ele repetiu o gesto com toda a equipe do ACNUR que estava ali. Foi impossível segurar as lágrimas. Estávamos exaustos, mas o sentimento de gratidão deste garoto nos tocou profundamente.
Sabíamos que todas aquelas pessoas tinham em si a esperança de começar uma nova vida no Brasil. São por momentos como esse que trabalhamos.
Qual é a parte mais gratificante do seu trabalho? E a mais desafiadora?
Acho que a parte mais gratificante do meu trabalho é a sensação de que realmente estamos impactando positivamente a vida das pessoas, ajudando-as a se reerguer neste momento tão difícil. Sei que o dia valeu a pena quando sinto que consegui ajudar alguém de alguma forma, impactando positivamente a vida dessas pessoas que deixaram suas casas muitas vezes levando apenas a roupa do corpo. É a alegria de receber um sorriso de alguém que estava há tanto tempo sem receber um tratamento humanizado. A parte mais desafiadora sem dúvida é ter que dizer não a pessoas que você sabe que estão precisando de ajuda por existirem pessoas que, naquele momento, precisam mais. Não tem nada pior do que dizer a uma mãe que no momento não podemos ajudá-la.
Mais de 4,5 milhões de venezuelanos deixaram seu país para escapar da hiperinflação, fome e falta de serviços básicos. A sua ajuda garante a proteção de quem foi forçado a deixar tudo pra trás para sobreviver. Doe agora!
Atualização em agosto de 2020: Atualmente, Lyvia Barbosa atua como assistente sênior de proteção do ACNUR em São Paulo.