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Da compaixão ao abraço à causa dos refugiados na Europa

Comunicados à imprensa

Da compaixão ao abraço à causa dos refugiados na Europa

Da compaixão ao abraço à causa dos refugiados na EuropaJornalista brasileira conta sua experiência de 45 dias como voluntária na ilha grega de Lesbos.
19 Agosto 2016

São Paulo, 19 de agosto de 2016 (ACNUR) - Quando montou seu negócio de arranjos de flores em São Paulo para angariar recursos para os refugiados na Europa, a jornalista brasileira Kety Shapazian trazia na memória os rostos de sobreviventes da travessia do Mar Mediterrâneo a quem acolhera entre dezembro e janeiro na ilha de Lesbos, na Grécia. O senhor sírio desesperado para reencontrar o filho adolescente, o homem que extraíra um rim duas semanas antes e necessitava medicamentos, a garota encharcada e faminta que viajava sozinha, a mulher resgatada de um naufrágio em crise de hipotermia, a menina de quatro anos trazida pelas ondas para a costa, sem vida.

 Kety e sua filha Gabriela, de 16 anos, decidiram no ano passado embarcar para a Grécia com o objetivo de juntarem-se aos voluntários independentes que, na ocasião, se dispunham a acolher os numerosos refugiados e imigrantes sírios, afegãos, paquistaneses e de outras nacionalidades vindos em botes e barcos precários da costa da Turquia. Especilizada no jornalismo internacional, Kety mostrava-se indignada e cheia de compaixão diante das notícias e imagens vindas da Europa sobre o fluxo de refugiados, especialmente sírios, nos últimos meses de 2015. Sua paralisia terminou ao ser provocada por sua filha.

 “Por que, em vez de ficar chocada, não vai pra lá ajudá-los?”, perguntou Gabriela.

As duas foram. Arrecadaram dinheiro “na cara de pau” com amigos e parentes para levar 2.000 pares de meias e para, na hora do check-in no aeroporto de Guarulhos, pagar o excesso de bagagem. Também para manterem-se na Grécia, em situação modesta. As passagens foram um presente de sua irmã. Kety rumou diretamente para Atenas em meados de dezembro e, de lá, para Lesbos. Gabi, como sua filha é chamada em casa, passou temporada com a avó na Itália e seguiu para o encontro de sua mãe, pouco antes do Natal. Pretendiam trabalhar duas semanas em Lesbos. Passaram 45 dias.

“Logo na minha chegada, no porto de Lesbos, encontrei 30 refugiados afegãos esperando pelo embarque ao continente. Comprei 14 sacos de dormir para parte deles e um celular para monitorar a jornada de de dois irmãos, um rapaz de 17 anos e sua irmã de 15, que, felizmente, conseguiram chegar à Suécia”, contou Kety. “Eles não estavam nem na metade de suas jornadas.”

Kety e Gabi fizeram parte de um grupo de centenas de voluntários de vários países do mundo que se uniram em vários pontos da Europa, em especial da Grécia, para dar a primeira acolhida aos refugiados vindos do Leste. Milhares de pessoas dedicaram tempo e esforços pessoais nessa tarefa na Grécia, em sintonia com os trabalhos da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Muitos ainda prosseguem na lida em terreno europeu e em seus países de origem.

Membros de organizações não-governamentais mais preparados para a ajuda aos deslocados por conflitos e perseguições – Médicos Sem Fronteira, Proactiva, See Watch, Fishlight e outras  - somavam-se a quem, sem experiência, se ofereciam para cortar legumes, comprar mantimentos, abraçar os recém-chegados, entregar-lhes roupas secas e sopa e a aprender como lidar com situações das mais inesperadas. Naquele período nevrálgico, cerca de 500 mil pessoas desembarcaram na ilha, com área um pouco maior do que a da cidade de São Paulo. Em apenas um dia, lembra Kety, 17 barcos chegaram nas costas de Lesbos. 

 “Quando os médicos começaram a fazer massagem cardíaca naquela mulher resgatada de um naufrágio, parei e me controlei: estou na comissão de frente e tenho muita gente para cuidar neste momento; deixo parar chorar depois”, relatou sobre seu aprendizado. 

Todos os dias, os voluntários se reuniam Goji Café, que tornou-se uma espécie de quartel-general de solidariedade em Lesbos. Alertados pelos seus celulares por fontes na Turquia e até mesmo em outros países ou pelos dois canais de rádio 24 horas ligados, os voluntários independentes esperavam as embarcações lançadas ao mar com grupos de refugiados. Muitos deles vinham em botes infláveis, sob o comando de alguém que jamais conduzira uma embarcação. Entre o porto de Lesbos e a Turquia, havia uma linha imaginária de 10 milhas náuticas (18,5 quilômetros) e a orientação dada por um coiote, naturalmente bem pago, para seguir tal direção.

Voluntários seguram o barco, para evitar que vire, e acalmam os refugiados antes de pisarem la ilha de Lesbos. © ACNUR / Kety Shapazian

Angústia - Kety lembra-se das horas de ansiedade. Os voluntários se dividiam em três pontos da ilha – Eftalou, Skala Sikamineas e o farol Korakas  – à espera dos barcos. Muitos passageiros aportavam em condições precárias, famélicos e hipotérmicos, depois de dias em alto mar. Havia os afortunados, cujos botes eram escoltados desde o limite entre as águas turcas e gregas pelos jetskies e lanchas do See Watch. Muitos foram resgatados das águas frias com vida. Para outros, porém, a travessia foi o ponto final. Milhares de corpos foram sepultados em Lesbos desde meados de 2015, quando o fluxo vindo da Turquia se acentuou, até o bloqueio da fronteira da Grécia com a Macedônia, em março deste ano. O cemitério São Panteleimon, único da ilha, esgotou-se.

“Ficávamos na beira d´água acenando com coisas coloridas, como os nossos próprios coletes amarelos. Seis voluntários avançavam no mar para segurar o barco e impedir que virasse. Pedíamos calma para as pessoas, que queriam saltar ao mesmo tempo, em desespero, e começávamos a tirar primeiro as crianças, com o cuidado de levá-las para um lugar de onde poderiam ser vistas pelos seus pais. Então, formávamos um corredor humano para que os adultos desembarcassem e, por fim, tirávamos seus pertences. Em terra, as famílias iam se juntando, enquanto colega voluntários gritavam em árabe ‘chá, sopa’ e os acolhiam”, comentou. “Eu gostava de dar o abraço, sempre com um sorriso, e de chamá-los para se aquecerem e se secarem.”

A jornalista brasileira lembra-se especialmente quando os irmãos Hanan, de 9 anos, e Mohamed, de 4, desembarcaram e se aquietaram, sem demonstrar nenhuma ansiedade por encontrar um rosto familiar. Foram alimentados e receberam roupas no campo de Platanos, mantido por anarquistas gregos, até que os voluntários perceberam se tratar de menores desacompanhados. O funcionário do ACNUR encarregado desses casos foi alertado, enquanto outros voluntários procuravam a mochila da menina. Lá estava um pedaço de papel molhado, no qual ainda eram visíveis os nomes de sua mãe, residente em Atenas, e de outros parentes, bem como os telefones. O ACNUR proporcionou, dias depois, o reencontro da família em Lesbos.

O sírio Hahmatuluah Akhaban chegou a Lesbos com a foto de seu filho Homeed, de 15 anos, nas mãos. Kety registrou sua imagem triste com a câmara do celular. Os voluntários recorreram aos registros de refugiados do campo Moria, passagem obrigatória para todos os desembarcados em Lesbos, e a seus contatos pela Europa. Mas não encontraram o nome do garoto. Segundo Kety, muitos refugiados chegavam a Lesbos sem os seus passaportes e declaravam ter a nacionalidade com menor restrição de ingresso na Europa naquele momento. Iraquianos diziam ser sírios ou afegãos. Sírios diziam ser paquistaneses ou ienemitas. Não raro, os seus nomes também eram trocados. Esses artifícios complicam a reunificação de famílias.

 “Deixei meu cartão com Akhaban, com a esperança de ler uma mensagem sobre o reencontro com seu filho. Até agora, não recebi nenhuma”, constatou.

Um dia, o mar trouxe o corpo de uma menina de quatro anos. Enquanto era esperada a equipe de perícia, um médico voluntário aproximou-se e permaneceu um bom tempo sussurando preces do Alcorão. Kety registrou a imagem em seu telefone celular, assim como a justificativa do médico para seu ato. Ele contou a Ketty que sua filha morrera quatro anos antes. Ao ver a menina morta em Lesbos, compreendera que precisava estar ali naquele momento para velar e rezar pela garotinha, conforme os seus próprios ritos religiosos.