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Khaled Hosseini fala sobre solidariedade e inspirações por trás de seus livros

Comunicados à imprensa

Khaled Hosseini fala sobre solidariedade e inspirações por trás de seus livros

22 Setembro 2021
Refugiados eritreus no campo Adi Harush, na Etiópia. (Foto: Hanna Qassis/ Acnur)
Texto originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em 28 de julho de 2021.

Discurso de Khaled Hosseini  proferido durante evento para doadores do ACNUR Brasil, “O Poder da Inclusão”.


A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) lançou recentemente um relatório destacando que, no final de 2020, havia 82,4 milhões de pessoas forçadas a se deslocar no mundo, incluindo mais de 26 milhões de refugiados. Esses números são importantes, porque nos ajudam a contextualizar e entender a magnitude da crise global de deslocamento, contudo, também têm um efeito desumanizador.

O sofrimento humano em escala tão grande tende a se tornar abstrato para nós. Como humanos, somos movidos a agir por meio da conexão com histórias individuais. Para mim, essas dezenas de milhões de pessoas representam as histórias únicas de pais, mães e filhos cujas famílias foram dilaceradas, cujas vidas foram destruídas, cujas esperanças foram fragmentadas.

Uma das minhas principais responsabilidades como embaixador da boa vontade do ACNUR é chamar a atenção para essas histórias individuais e humanas, e a perda, o trauma, o amor e a sobrevivência que estão por trás delas. E, um a um, tentar colocar rosto nas 82,4 milhões de pessoas que foram forçadas a fugir de suas casas.

Com A Memória do Mar, eu queria prestar homenagem, de alguma forma, à família de Alan Kurdi, o jovem garoto sírio cujo corpo sem vida foi parar em uma praia na Turquia, depois de se afogar tentando encontrar segurança na Europa. Minha entrada naquele mundo foi como pai. Quando vi aquela foto de Alan Kurdi na praia, fiquei completamente chocado. Acho que parte do que deu a essa foto tanto poder é que o pequeno Alan está com o rosto para baixo. Por não conseguir distinguir suas feições, mães e pais acabam por projetar o rosto de seu próprio filho nele. Foi o que me vi fazendo.

Fiquei imaginando o pesadelo emocional e psicológico que seu pai estava enfrentando cada vez que aquela fotografia era vista. Queria destacar o desespero incomensurável sentido por milhares de famílias, como os Kurdi, todos os dias: famílias que foram forçadas pela violência, pelo conflito e pela perseguição a abandonar suas casas e se arriscar nessa jornada absolutamente brutal, e muitas vezes letal, através do mar.

Quando escrevi O Caçador de Pipas, o fiz principalmente para mim, porque estava obcecado com a história daqueles dois meninos. Eu me apaixonei completamente pelos personagens. Havia caído em seu mundo e comecei a me perder nele. Quando tinha escrito cerca de dois terços do livro, aviões atingiram as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Por um tempo, parei de escrever, com receio de parecer que eu estava capitalizando em cima daquela tragédia imensa. Mas, então, percebi que o livro poderia dar uma face diferente ao Afeganistão, que todos associavam apenas com a guerra e o Talibã. Isso poderia dar ao país – o país onde nasci – um rosto humano.

Eu sou um filho do deslocamento. Lembro-me do momento em que saiu a notícia sobre a invasão no Afeganistão. Eu estava em um apartamento em Paris com meus pais, assistindo à televisão, enquanto os tanques soviéticos invadiam nosso país. Vi meus pais trocarem um olhar e soube naquela hora que nossa vida como a conhecíamos havia acabado.

Mudamos para os Estados Unidos como solicitantes da condição de refugiados em 1980, com malas de roupas e nada mais em nosso nome. No Afeganistão, meus pais eram pessoas de classe média, com identidades e carreiras estabelecidas. Meu pai era diplomata e minha mãe ajudava a administrar uma grande escola de segundo grau para meninas. Ainda assim, da noite para o dia, em um piscar de olhos, tudo pelo que trabalharam durante toda a sua vida foi perdido. Para meus pais, a adaptação não foi fácil: se um dia foram quem doava para instituições de caridade no Afeganistão, passaram a ser quem recebia apoio financeiro do governo nos Estados Unidos.

O menor ato de gentileza ou ajuda pode fazer uma enorme diferença.

Quando adolescente, lembro-me de como nos sentíamos gratos quando pessoas da comunidade nos ajudavam. Como na vez em que meu pai conheceu um homem na escola de direção que o ajudou a se candidatar a um emprego. Isso é algo que quero que todos entendam: quando as pessoas se tornam refugiadas e vivem em um país diferente, pode ser muito confuso e desorientador. O menor ato de gentileza ou ajuda pode fazer uma enorme diferença.

Se você sabe que há refugiados em sua comunidade, sugiro fortemente que entre em contato com eles, converse com eles, faça perguntas para entender suas origens, suas vidas, o que os trouxe aqui. Veja se eles precisam de ajuda – mesmo que seja para se candidatar a um emprego, marcar uma consulta médica, solicitar uma carteira de motorista, matricular seus filhos na escola. Digo isso como ex-refugiado e como uma pessoa que conhece os benefícios de receber apoio enquanto tenta recomeçar sua vida.

Sou sensível ao fato de que às vezes não é fácil ajudar outras pessoas quando seu próprio povo está sofrendo, quando você está passando por uma crise econômica, quando você está no meio de uma pandemia. Mas refugiados são seres humanos que perderam tudo em suas vidas anteriores. Suas realidades, suas comunidades, seus meios de subsistência, muitas vezes seus entes queridos, tudo o que já construíram, por causa de circunstâncias fora de sua própria influência ou culpa.

Eles não devem ser culpados ou usados como bodes expiatórios pela situação em que se encontram. Devemos agir em solidariedade com eles. E esse é um dos motivos pelos quais trabalho com o ACNUR: porque seus valores exigem solidariedade.

Nunca esquecerei a história de uma jovem chamada Aisha que conheci quando meu filho e eu viajamos para Uganda com o ACNUR alguns anos atrás. Ela havia fugido do Sudão do Sul com seus filhos quando a guerra chegou em sua aldeia. Eles seguiram para Uganda e estavam morando em um assentamento de refugiados. De repente, ela teve que construir uma nova vida para sua família.

Essa mulher, que estava em uma das condições de vida mais difíceis que eu poderia imaginar – morando em um deserto, em uma cabana que ela mesma tinha feito com as próprias mãos, longe de seu país, cuidando de seus filhos – decidiu que havia espaço suficiente em seu coração para receber outro ser humano em sua casa. Ela foi convidada a cuidar de uma criança abandonada de dois anos, gravemente incapacitada e incapaz de mover o lado esquerdo do corpo.

Esse é um exemplo de como é comovente para mim encontrar refugiados e estar cara a cara com seu espírito extraordinário, sua generosidade e resiliência. É por isso que encorajo todos a apoiarem organizações como o ACNUR. Porque, ao fazer isso, você está salvando vidas, ajudando a fornecer proteção, sustento, comida, abrigo e recursos para pessoas que perderam tudo.