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Se negligenciarmos as necessidades humanitárias imediatas na Síria, as divisões sociais e políticas não serão curadas

Discursos e declarações

Se negligenciarmos as necessidades humanitárias imediatas na Síria, as divisões sociais e políticas não serão curadas

Sem apoio global, milhões de refugiados sírios e deslocados verão seu sonho de retorno arruinado, adverte Filippo Grandi, Alto Comissário da ONU para Refugiados
14 Março 2025
Syrian refugees in Türkiye, including families with children, arrive at the Cilvegözü – Bab Al-Hawa border crossing point between Türkiye and Syria, with their luggage, to complete a voluntary repatriation process, before crossing into Syria to return home.

Ibtihal e sua família retornaram para sua cidade natal, Dara'a, no sul da Síria, em janeiro, após mais de uma década como refugiados na Jordânia. A casa havia sofrido danos extensos nas paredes, janelas e caixas d'água – seu marido apontou para um buraco no telhado, onde um morteiro havia perfurado. Não havia eletricidade e, portanto, nenhuma iluminação. Aos poucos, o marido de Ibtihal e seus vizinhos estavam reconstruindo o prédio. Apesar da destruição, estavam felizes por estar de volta.

“Quando cheguei, fiquei chocada com o estado do país inteiro”, disse Ibtihal. “Mas tenho grande fé em Deus de que a Síria será reconstruída.”

No mesmo mês, eu estava em Amã, capital da Jordânia, observando refugiados carregarem suas malas nos ônibus, tomarem seus assentos e se prepararem para seguir os passos de Ibtihal de volta à sua terra natal. Para milhões de sírios, deslocados por 14 anos de um conflito brutal, este é um dia que achavam que nunca chegaria.
Momentos como esse, em que pessoas forçadas a fugir de suas casas finalmente podem fazer o caminho de volta, estão entre os mais inspiradores para quem trabalha no ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados. Em uma era em que o deslocamento forçado atinge níveis recordes, temos uma rara oportunidade de ajudar as pessoas a retornarem para casa e reconstruírem suas vidas. Também é uma chance inesperada de promover a paz e a estabilidade, tanto na Síria quanto em toda a região. Mas essa janela de oportunidade não permanecerá aberta para sempre.

Desde que o ex-presidente Bashar al-Assad foi derrubado no início de dezembro de 2024, estimamos que mais de um milhão de sírios tenham voltado para casa, incluindo aqueles que retornam de outros países e do próprio território sírio. Muitos outros pretendem seguir esse caminho: em uma pesquisa recente que realizamos, 27% dos refugiados expressaram intenção imediata de retornar à sua terra natal nos próximos 12 meses, um aumento significativo em relação aos menos de 2% antes da queda de Assad.

Mas 14 anos de caos e violência deixam marcas. A escala da destruição é difícil de descrever. Nada foi poupado – moradias, escolas, hospitais, prédios comerciais, estradas, usinas elétricas, estações de tratamento de esgoto... Serviços básicos, como abastecimento de água, eletricidade e coleta de lixo, são limitados ou inexistentes. Nessas circunstâncias, as pessoas se perguntam como vão sobreviver e como vão reconstruir suas vidas.

Garantindo um retorno duradouro

Essas preocupações são agravadas pela recente onda de violência no oeste da Síria, que já resultou na morte de centenas de civis. Mais pessoas fugiram de suas casas. O atual governo já destacou a “rara oportunidade histórica” de reconstruir o país; essa oportunidade será desperdiçada se rivalidades étnicas e sectárias prevalecerem sobre o desejo de paz, ordem e respeito aos direitos humanos. Em Aleppo, onde há uma grande comunidade cristã, ouvi líderes religiosos tentando acalmar suas congregações ansiosas sobre o rumo que o país pode tomar. Seus temores só aumentaram após os assassinatos da última semana.

Embora o compromisso do governo sírio e de suas diversas facções com uma paz duradoura seja fundamental, o futuro do país também depende da rapidez e da força do apoio financeiro e diplomático à reconstrução, à segurança, aos investimentos e ao desenvolvimento. Esses são os pilares da estabilidade e prosperidade – e do retorno sustentável de milhões de pessoas. A recente suspensão de algumas sanções pela União Europeia é um começo promissor, mas muito mais é necessário.

Se negligenciarmos tanto as necessidades humanitárias imediatas quanto a visão de longo prazo, as divisões sociais e políticas não serão curadas; extremistas encontrarão mais espaço para operar; menos sírios retornarão e aqueles que tentarem poderão ser forçados a fugir novamente.

Necessidade urgente de ação

Mesmo com o financiamento incerto para este ano, o ACNUR continua apoiando refugiados e pessoas deslocadas dentro da Síria. Quando solicitado, nós e nossos parceiros oferecemos transporte para casa, orientação e informações, assistência na reintegração e ajuda humanitária, como cobertores, roupas de inverno e reparos em casas danificadas. Estamos auxiliando as pessoas nos pontos de travessia e por meio da nossa rede de 122 centros comunitários dentro da Síria.

No entanto, sem financiamento adequado e confiável, não conseguiremos manter esse apoio – nem apoiar as muitas organizações locais que prestam assistência vital.
Além disso, ainda há 5,5 milhões de refugiados sírios na Turquia, no Líbano, na Jordânia, no Iraque e no Egito, além de cerca de 1,4 milhão em outros lugares, principalmente na Europa. Esses países os acolhem há 14 anos. A existência desses refugiados, e a responsabilidade por cuidar deles, não pode simplesmente ser esquecida. Também não devem ser forçados a retornar contra sua vontade; essa decisão precisa ser tomada por eles, para que os retornos sejam realmente sustentáveis.

Nos próximos dias, a União Europeia sediará uma conferência em Bruxelas para abordar as necessidades urgentes que destaquei. Espero que todos os participantes reconheçam a importância da ação imediata e as possíveis consequências da inação. Milhões de pessoas ousaram ter esperança. Não podemos permitir que essa esperança morra.

*Este artigo de opinião foi publicado originalmente no Le Monde em francês e inglês em 13 de março de 2025.